A história de Natal não é ficção, mas, ainda assim, eu diria que ela
muda de uma maneira maravilhosa como interpretamos a ficção.
Pouco antes do lançamento do primeiro O senhor dos anéis,
dirigido por Peter Jackson, uma série de artigos de críticos literários e
de outras elites culturais lamentaram o apelo popular de fantasias,
mitos e lendas, muitos dos quais (no modo de entender deles) promoviam
pontos de vista retrógrados. Espera-se de pessoas modernas que sejam
mais realistas. Deveríamos compreender que nada é preto e branco, mas
cinza, que os finais felizes são cruéis, porque a vida não é assim. Na
revista The New Yorker, Anthony Lane escreveu acerca do romance
de Tolkien: “É um livro cheio de bravatas, e, no entanto, entregar-se a
ele — sucumbir a ele [gostar de verdade dele], como muitos de nós
fizemos em uma primeira leitura — revela […] uma relutância em enfrentar
as nuances mais sutis da vida que beira a covardia”.[1] No entanto, Hollywood continua reciclando contos de fadas sob várias formas porque as pessoas têm fome deles.
Os grandes contos de fadas e lendas — A Bela e a Fera, A Bela Adormecida, O rei Artur, Fausto —
não aconteceram de verdade, claro. Não são fatos reais. Contudo,
parecem suprir um conjunto de anseios do coração humano que a ficção
realista nunca é capaz de alcançar ou satisfazer. Isso acontece porque
no fundo do coração humano existem esses desejos — de experimentar o
sobrenatural, de fugir da morte, de conhecer um amor que jamais podemos
perder, de não envelhecer, e sim viver o suficiente para concretizar
nossos sonhos criativos, de voar, de nos comunicar com seres inumanos,
de triunfar sobre o mal. Se as histórias fantásticas forem bem contadas,
nós as consideraremos incrivelmente emocionantes e satisfatórias. Por
quê? Pelo fato de, mesmo sabendo que na realidade essas histórias não
aconteceram, nosso coração anseia por essas habilidades e conquistas, e
porque uma história bem contada satisfaz momentaneamente nossos desejos,
aliviando um pouco esse incrível anseio.
A Bela e a Fera nos fala da existência de um amor capaz de nos resgatar da brutalidade que criamos para nós mesmos. A Bela Adormecida nos
conta que nos encontramos em uma espécie de feitiço do sono e que
existe um príncipe imponente capaz de vir quebrá-lo. Ouvimos essas
histórias e elas mexem conosco, pois no fundo do coração nós cremos, ou
queremos crer, que esses fenômenos são verdadeiros. A morte não deveria ser o fim. Nós não deveríamos perder nossos entes queridos. O mal não deveria
triunfar. O coração sente que, embora as histórias em si não sejam
verdadeiras, as realidades por trás delas são de alguma forma
verdadeiras ou deveriam ser. Mas a mente diz não, e os críticos
dizem não. Insistem em que, quando você se entrega a contos de fadas e
acredita de fato em absolutos morais, no sobrenatural e na ideia de que
viveremos para sempre, nada disso tem relação com a realidade. É uma
covardia entregar-se a esse tipo de ideia.
Chegamos então à narrativa do Natal. À primeira vista, ela se parece
muito com outras lendas. Aqui está um relato sobre alguém de um mundo
diferente que ingressa no nosso, alguém que tem poderes miraculosos,
consegue acalmar a tempestade, curar e ressuscitar pessoas. Até que seus
inimigos o entregam, ele é condenado à morte e parece que toda
esperança se acabou, mas por fim ele ressuscita dos mortos e salva todo o
mundo. Lemos isso e pensamos: “Mais um grande conto de fadas!”. De
fato, parece que a história do Natal é mais um relato apontando para essas realidades subjacentes.
No entanto, o Evangelho de Mateus nega essa ideia ao fundamentar
Jesus na história, não em um “Era uma vez”. Diz que isso não tem nada de
conto de fadas. Jesus Cristo não é mais uma história adorável apontando
para essas realidades subjacentes — ele é a realidade subjacente para a qual todas as histórias apontam.
Jesus
Cristo veio do mundo eterno e sobrenatural que sentimos existir, que
nosso coração sabe que existe, embora a cabeça diga que não. No Natal,
ele abriu uma passagem entre ideal e real, eterno e temporário e
ingressou em nosso mundo. Isso significa, se Mateus estiver certo, que existe uma bruxa má neste mundo, e que estamos debaixo de um feitiço, e que existe um
príncipe imponente que quebrou o feitiço, e que existe um amor do qual
jamais seremos separados. E voaremos de verdade um dia, derrotaremos a
morte, e neste mundo, hoje “[vermelho] nas presas e garras”, um dia até
as árvores dançarão e cantarão (veja Sl 65.13; 96.11-13).[2]
Em outras palavras, embora os contos de fadas não sejam fatos reais, a
verdade de Jesus significa que todas as histórias que amamos não são de
modo nenhum um escapismo. De certa forma, elas (ou as realidades
sobrenaturais para as quais apontam) se tornarão realidade nele.
Para o cristão, é difícil saber o que dizer à criança que lê um livro
e diz: “Eu queria que existisse um príncipe que nos salvasse do dragão.
Eu queria que o Super-Homem fosse de verdade. Eu queria que pudéssemos
voar. Eu queria que pudéssemos viver para sempre”. Você não pode
simplesmente falar sem pensar: “Existe! Faremos tudo isso!”. No filme Hook — a volta do capitão Gancho,
Maggie Smith faz o papel de uma Wendy já idosa, da história de Peter
Pan. Há uma cena em que ela conversa com Robin Williams, um Peter Pan
adulto sofrendo de amnésia. Ele se diverte com as histórias que Wendy
conta a seus filhos, mas em determinado momento ela o encara e diz:
“Peter, essas histórias são reais”. Se o Natal de fato aconteceu, isso
significa que a raça humana inteira sofre de amnésia, mas as histórias
que mais amamos não são na verdade apenas um entretenimento escapista. O
evangelho, por ser uma história real, significa que todas as melhores
histórias demonstrarão, em última análise, ser verdadeiras.
Trecho extraído da obra “O Natal Escondido: A surpreendente verdade por trás do nascimento de Cristo“,
de Timothy Keller, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2017, pp. 40-44.
Traduzido por Jurandy Bravo. Publicado no site Tuporém com permissão.
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