“Desapareceu a doença, e ele ficou limpo”. (Marcos 1.40-45)
A
discussão de hoje refere-se à integridade espiritual do crente. Paulo
discutirá com os cristãos coríntios o bom emprego da palavra
“espiritualidade”. Quase sempre nos referimos a esta palavra pensando
como os filósofos gregos, que imaginavam possível um estado de perfeição
do espírito somente quando o corpo não interfere na abstração
espiritual, fora do corpo e das realidades humanas. Quer dizer, o melhor
estado espiritual é aquele alcançado pela mortificação do corpo.
Os
monges gregos, ainda no começo da Idade Média, já diziam: “o espírito é
para Deus, o corpo é para o imperador” (espírito é “nous”, e “soma” é
corpo, no grego). Mas isto não corresponde ao pensamento bíblico e
paulino original, por exemplo1. Nenhuma escola rabínica, no
tempo bíblico apostólico, ensinaria tal coisa. Paulo foi instruído na
concepção judaica, embora fosse inevitável a influência e pressões
culturais do mundo helênico. O modelo de espiritualidade religiosa que
prevaleceu não tem a ver com a revelação bíblica, mas sim com uma
religião pagã do século 7º a.C., “Religião Órfica da Trácia”. Desde os
primeiros séculos da era cristã essa concepção se tornou dominante no
cristianismo, informa Renold Blank. Até para as pessoas mais simples: “o
espírito é tudo, o corpo não vale nada; o espírito valoriza o corpo e a
matéria degrada o espírito”. A depreciação do corpo prossegue.
Equivocadamente!
Sem fugir do foco da discussão, precisamos
insistir que o modelo antropológico dualista (espírito e corpo
separados) tem suas raízes numa cultura alheia à do povo bíblico
original, conforme refletido no Primeiro Testamento. Uma discussão mais
habilitada da teologia nos levará à coragem para refinar conceitos que
versam sobre o poder e a vida, e sobre o próprio corpo. A Bíblia, por
sua vez, não absorve essas razões culturais e ideológicas de um
cristianismo aculturado já distante das fontes apostólicas.
Não
há nada mais universal que o corpo. Ele cria o mundo e tudo quanto
existe se organiza a partir dele. Tudo quanto o homem criou, seus
instrumentos de trabalho, sua sociedade, seus valores, suas aspirações,
suas esperanças, seus mitos, sua linguagem, sua religião, suas
ideologias, sua ciência, e qualquer outra coisa que se possa inventariar
como surgida do homem – ficou engendrado em meio à luta pela
sobrevivência do corpo. É justamente no centro, como fonte e razão de
ser e existir, que está o corpo do homem. O corpo é a origem do
imperativo categórico de agir. “O corpo é o lugar fantástico onde mora,
adormecido, um universo inteiro”2.
Temos uma página
bastante comum no evangelho de Marcos (1.40-45): Jesus não somente prega
a respeito do corpo, mas também, de fato, o cura. Jesus associa
palavras e atos. Suas ações trazem libertação, porém libertação
integral, espiritual e corporal. Seu modo de expressar a religião
professa solidariedade, compaixão, misericórdia, cuidado, amor
libertador. São valores espirituais elevados muito acima da
religiosidade sem sentimentos, catártica, regulamentar, desencarnada.
Jesus não pratica essa religião. Ao contrário, combate o legalismo que
impede a abertura para o outro, seu corpo ou a comunidade em si mesma.
Para ele, amar é libertar.
Essa, pois, é a economia do corpo
saudável ou doente em questão, seguramente ligada a uma determinada
forma de capital, própria vida comercializada na medicina pública e
privada. Sob a sensibilidade de instrumentos especiais, uma espécie de
GPS que perscruta as recentes visitas médicas ou farmacológicas ao corpo
dos homens, mulheres, crianças, idosos, em meio a uma paisagem social
devastada pela desigualdade. Especialmente no tratamento do corpo
doente. Remodelando os contornos da medicina, da cidadania da saúde, das
raças e de outras formações políticas, não temos mais que decidir entre
uma interpretação materialista ou espiritualista desses
desenvolvimentos3. Poucas atividades são tão transparentes nas injustiças e desigualdades na sociedade moderna.
A
ética somática e o capital têm se unido desde o nascimento. Com efeito,
podendo a medicina e a seguridade colocar-se a serviço da saúde e da
vida, onde a vida mesma atingiu tal importância ética; onde as
tecnologias para manter a vida e incrementá-la, podem representar a si
mesmas. Muito mais destacada que a corrupta corrida por lucro e ganho
individual. Seria possível ao “biocapital” alcançar nossas economias de
esperança, de imaginação e de cuidado com o homem e a sociedade? Nesse
sentido, podemos afirmar que a ética pragmática ou positiva, enquanto
consente na capitalização da vida, estando intrinsecamente ligada ao
“espírito do biocapital”, expressa tanto na medicina pública quanto na
medicina privada, distancia-se do evangelho do Reino de Deus.
A
concepção bíblica refere-se ao ser total, que é corpo, é alma e é
espírito, finalmente. E isso no Segundo Testamento, porque no Primeiro
os exegetas do século 19 já haviam descoberto que a palavra “Espírito”
(“pneuma”, na Septuaginta) refere-se somente ao Espírito de Deus. O
hebreu não conhece outra forma de identificar o ser humano senão através
do “corpo que é alma e da alma que é corpo” (“nephesh”). Para ele,
corpo e alma são indissociáveis.
O ser humano é o centro da
pregação de Jesus, e isto se demonstra na ordem do mundo a partir do
ponto de vista daqueles que não têm o poder. Eles são o centro da vida.
Por isso, quando descubro que “sou eu o centro”, homem indivisível, ser
humano, desautorizo-os, e passo a ser um perigo para os comandantes do
mundo. Não existe objetividade no poder. Se houvesse, não haveria
problemas em permitir falar da “realidade com realismo”. Somos o que
somos porque somos um corpo. Meu corpo é parte de outros corpos, na
igreja, na comunidade, na sociedade, ensinou Rubem Alves.
Paulo
prossegue nesta linha: “quer comam ou bebam, ou que façam qualquer outra
coisa, façam tudo para a glória de Deus”. Não só as atividades
religiosas tradicionais têm a ver com a espiritualidade concreta do
corpo, mas o comum do cotidiano de cada um e de todos: “...porque nós,
embora muitos, somos um só corpo” (1 Co 10.17; 10.31-11). Esse acréscimo
identifica outros aspectos, como os que envolvem a comunidade, a
sociedade e o crente.
Derval Dasilio
É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil
e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que
Habita em Nós” (2010).
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