O androcentrismo eclesiástico faz parte da dubiedade e duplicidade de
pesos e medidas a que nos acostumamos. Afirmações sobre o homem como ser
humano padrão não levam em conta um pensamento libertador
“ginocêntrico” (gnecos = mulher, no grego). Pergunta-se, com justiça,
por que só os contextos de vida e as experiências masculinas são levados
em conta, dando-lhes “validade universal”. Nem é preciso imaginar muito
para ver como demora à mulher oprimida a chegada dos direitos humanos
universais (o sufrágio universal, entre os direitos mínimos numa
democracia androcêntrica, chegou para a mulher brasileira alfabetizada
somente em 1930). Nenhuma novidade dentro da igreja, para todos, uma vez
que outras questões afins aos direitos humanos, como racismo,
homofobia, direitos sociais, direitos cidadãos, socialização da economia
e dos bens essenciais, também são ignoradas, no mais das vezes.
Questões
que se referem ao “todo” da sociedade humana também não entram na
maioria das comunidades cristãs. Direitos dos pobres, dos explorados e
marginalizados, relação de justiça com a natureza e o mundo criado,
violência estrutural, fazem parte do círculo vicioso onde está inserida a
mulher e suas responsabilidades. Aqui, tantas vezes, com a mulher
fazendo parte, ou, pervertida, sendo solidária com o explorador e
dominador. Mulheres vestindo a pele do predador não constituem novidade,
a exemplo daquela pesquisa recente sobre o consentimento do estupro1. Consequência da contaminação cultural da qual não se isenta a igreja. Nem a mulher na sociedade autoritária.
É
duríssimo para a mulher libertária que o preconceito androcêntrico
onipresente a exclua da velocidade necessária, e só lhe conceda o
alcance gota a gota dos direitos fundamentais, no trabalho, na
transmissão cultural, nas lutas por direitos humanos e sociais, por
exemplo. Dentro da Igreja, é preciso tirar as máscaras da objetividade
masculina contra a subjetividade feminina, aparentemente harmonizadas no
culto e no serviço. Principalmente quando se evidencia a presença do
divino sem exclusivismo de gênero. A presença visível perceptível,
“teofania”, comunicação de Deus em Jesus Cristo, clama por justiça
através de relações recíprocas de justiça entre homens e mulheres. Nada
mais forte, nessa teologia, que a medida do humano alcançando o homem e a
mulher nas dimensões mais profundas do ser libertário, na luta contra o
sofrimento da humanidade. Isso é mais e maior que tudo.
Perigos
de guerra, comoções, riscos sociais, violência e opressão, perseguição
por causa da busca da liberdade, ocasionam sofrimento a homens e
mulheres, de igual modo. Por que os gastos exorbitantes com a Copa do
Mundo, a distribuição de renda entre os famintos e miseráveis, as
questões que envolvem o trabalho, a urbanização humanizada e mobilidade
urbana, não interessariam à mulher? Indistintamente. Não há sentido
algum na discriminação da mulher, não há isenção feminina nestas
situações, especialmente porque seu sofrimento é ainda maior que o do
homem, nestes cenários.
É preciso dizer que o Novo Testamento
incorporou a ideologia patriarcal herdada do judaísmo e da cultura
greco-romana nos chamados códigos de conduta doméstica (Col 3.18-19; Ef
5.22-24; 1Pe 2.13). Na Primeira Carta aos Coríntios (14.34-35), há o
intento de calar as mulheres reduzindo-as ao direito de apenas
profetizar. As proibições para as mulheres, relativas a ensinar,
batizar, dirigir a Ceia do Senhor, continuaram em documentos
posteriores. No período pós-apostólico, ou na segunda geração da igreja
inicial, as mulheres, no oficialato eclesiástico, tinham funções
consideravelmente diminuídas em importância2. O bispo eliminava até a autorização de profetizar. A igreja se institucionalizara.
Deve-se
isso à forte pressão da cultura patriarcal greco-romana. A comunidade
local, casa-igreja, é comparável a um aparelho subversivo na igreja
patriarcal posterior. Porém, onde estariam as mulheres judias do
movimento de Jesus? Inventa-se, depois, uma forma de domínio para
submeter a mulher ao que se chamaria “patriarcado amoroso”. Sabiamente,
Elza Tamez recusa esse eufemismo sugerindo: “patriarcalismo de amor é
uma denominação que não diz nada, porque não deixa de ser
patriarcalismo”.
Quando Paulo fala do sofrimento como
“synodinei”, “dores de parto” (Rm 8.18-25), refere-se ao “presente” de
todos os seres criados, porém, na esperança: “um dia o Universo ficará
livre do poder destruidor que o mantém escravo”. A mulher sabe muito bem
o que é “dor de parto”3. Talvez só ela saiba. Maria, mulher
exemplar no Evangelho, dá à luz uma criança que vem para simbolizar
todas as liberdades. Com dor. Sabe que dessas dores não nasce a morte,
mas sim a vida diante de Deus. Vida para toda a Criação, pelo parto do
Salvador.
Hoje, o desafio é trazer à teologia “ierusalemita” (centrada no judaísmo “cristão”)4
dos ministérios – uma vez que os 15 primeiros capítulos de Atos se
apegam aos acontecimentos iniciais da comunidade espiritual de Jerusalém
– o que foi incorporado pela teologia paulina das liberdades e dos
direitos na comunidade dos fiéis à concepção de inclusão de gênero:
“...não há homem ou mulher... pois todos sois um em Cristo Jesus” (Gl
3.26-29). Isso sem esquecer que o “sacerdócio real de todos os crentes”
não exclui a mulher dos ministérios e da vida de serviço da Igreja de
Cristo. Pela Graça de Deus.
É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil
e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que
Habita em Nós” (2010).
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