A vida do primeiro casal não estava isenta de crises. A primeira e
mais profunda delas acontece exatamente quando eles, em sua rotina,
deixam de buscar a Deus como casal e passam a ouvir outras vozes que
pretensamente têm instruções a lhes dar para a vida.
A crise nesta vida paradisíaca se inicia quando a serpente se
encontra com a mulher, que está sozinha, sem a companhia do esposo. É
interessante observar que a serpente escolhe exatamente esse momento,
pois quando estamos sozinhos ficamos mais vulneráveis. Por isso o sábio
afirma em Eclesiastes 4.9-10 que é sempre melhor serem dois. O fato de
estar sozinha faz com que a mulher tome uma decisão sem consultar seu
cônjuge – e essa decisão se mostra equivocada.
O processo de tomada de decisões entre
casais é sempre um processo difícil quando não há um diálogo harmônico
entre marido e mulher. Nosso machismo cultural afirma que a última
palavra deve ser sempre do esposo, e, infelizmente essa modelação
cultural entra pelos “poros” e acaba ganhando matizes de
pseudo-espiritualidade em intepretações da Bíblia dentro de nossas
igrejas. Lemos Efésios 5.22 (“mulheres, sujeitai-vos”) e fechamos os
olhos para o verso imediatamente anterior que propõe a sujeição mútua
(esposas aos maridos e maridos às esposas).
A verdade é que o caminho mais difícil – o estreito – aponta para a
busca de unidade e harmonia e pressupõe, para alcançar este fim, que
serão necessários muitos minutos de diálogo fértil e construtivo, com
uma escuta respeitosa e de coração aberto ao outro. É preciso abrir-se à
criatividade para superarmos a imposição egoísta do meu (que acredito
que é o certo) sobre o teu (que por ser distinto é presumido como
errado) e chegarmos ao nosso.
Quando a decisão é tomada unilateralmente, frequentemente resulta em uma crise!
Outro dado importante a ser observado nessa crise é que ela passa
essencialmente pelo sensorial, sem buscar elementos racionais para a
avaliação da realidade. A mulher vê (órgão dos sentidos) que a árvore
era “atraente aos olhos” e que parecia “agradável ao paladar” (órgão dos
sentidos). Então, deixa-se levar por essas sensações sem refletir (uso
da razão) sobre o significado mais profundo de tudo aquilo. Atitude
diferente da de Eva verificamos em outra mulher bíblica de destaque,
Maria, que refletia nos acontecimentos e buscava significado no que lhe
era de difícil compreensão (Lc 2. 51).
Tampouco Adão se detém para refletir sobre o estava acontecendo e
deixa-se levar pela mesma busca por prazer sensorial. Essa busca é algo
que afeta homens e mulheres desde os tempos mais remotos da humanidade.
Em si, ela não é negativa. Porém, quando não é equilibrada com a
reflexão racional, ela pode ter sequelas desastrosas. Hoje em dia,
quando um cônjuge trai seu par em busca de um “algo a mais” (sensorial),
acaba destruindo não só o relacionamento, mas também a autoestima do
cônjuge e a construção de valores dos filhos. Jovens que buscam
sensações orgásticas autocentradas “ficando” com vários
parceiros/parceiras de forma inconsequente e descompromissada, sem o
perceberem estão transformando os relacionamentos em padrões objetais
(uso o outro para ter sensações) e corroendo seu valor pessoal. Da mesma
forma que eu uso o outro, torno-me objeto de uso do outro (coisa),
deixando de ser uma pessoa na relação.
A reflexão à posteriori (“ouvindo os passos do Senhor […]
esconderam-se”, Gn 3.8) leva a sentimentos de vergonha (3.10), nojo,
medo, e tantos outros negativos. Isso é muito comum em um processo de
busca irrefletida pelo sensorial. Quantos jovens sentem-se mal após
sentirem-se usados e descartados por seus pares? Como Amnom que, de
sentir-se intensamente apaixonado, passou a sentir repugnância após
estuprar sua própria irmã (2Sm 13.15).
A crise se intensifica com a troca de acusações (Gn 3.12 e 13) e o
não reconhecimento de responsabilidade. Em um processo de crise
geralmente pensamos em que o outro é culpado, em vez de nos humilharmos e
reconhecermos a nossa parcela de responsabilidade. Sem a humilhação não
há a possibilidade de manifestação da graça de Deus (1Pe 5.6). O
orgulho próprio impede que desfrutemos de uma vida plena, pois,
paradoxalmente quando reconhecemos que erramos é que crescemos. É também
quando o relacionamento cresce, mas isso é difícil, pois, como Adão e
Eva que tentaram cobrir-se com frágeis folhas em Gênesis 3.7, tememos
que, ao expormos nossas falhas, o outro nos rejeitará, perderá sua
admiração por nós.
O desfecho da crise entre o casal se dá no aprofundamento da
distância relacional, com Deus “pré-vendo” que cada um dos componentes
do casal passaria a priorizar outros elementos, o que causaria profundos
problemas – uma mudança de foco da unidade relacional para atividades
que são consideradas “mais importantes”. A mulher passaria a valorizar
mais a maternidade, quebrando a harmonia conjugal e gerando uma
prevalência do marido nos processos decisórios familiares (Gn 3.16; 20).
O homem priorizaria o trabalho, através do qual tentaria restabelecer
sua dignidade (Gn 3.17-19), mas sempre com sofrimento. O prazer
sensorial que é buscado transforma-se em desprazer e o vínculo harmônico
do Éden é perdido – já não há mais transparência entre o homem e sua
esposa (Gn 3.21).
Fonte: ultimato.com.br
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