Muitos
de nós crescemos com a percepção de que o evangelho é fácil e bonito.
Escolhemos uma igreja e nela levamos nossas crianças, alimentamos
rituais de passagem e fazemos celebrações familiares, envoltos em um
“belo cenário”. O evangelho se torna um adendo, um cosmético para o
nosso bem-estar. Porém, ele é algo bem diferente disto. Aliás, na edição
anterior afirmamos que “é fácil, olhando para os Evangelhos, ver como
Jesus é um causador de confusão”. Vimos a tensão vivida pela sua própria
família quando ele perguntou de forma um pouco prepotente: “Quem é a
minha mãe, e quem são meus irmãos?” (Mc 3.33)
Quem nunca
ficou chocado com o modo relativo como Jesus parece tratar os vínculos
familiares? Confesso ter dificuldade de entender quando ele diz que os
inimigos serão os da própria casa e, também, que por causa do evangelho
se criará cizânia familiar (Mt 10. 34-36). Quando ele chama os
discípulos a segui-lo, pede fidelidade absoluta e coloca em segundo
plano a importância da família (Lc 14.26). Dizemos que a intenção dessa
palavra de Jesus é testar nossas prioridades. Contudo, seria mesmo
necessário relativizar tanto os vínculos familiares? Ou haveria algum
outro sentido nessa declaração?
Vejo
três movimentos que precisamos discernir e abraçar no que se refere a
essas palavras de Jesus. O primeiro nos desafia a olhar para dentro de
nós, a reconhecer quem somos e a nos confrontar com os processos
destrutivos que fermentam em nosso interior e poluem tudo a nossa volta:
“Mas as coisas que saem da boca vêm do coração; são essas que tornam o
homem impuro. Pois do coração saem os maus pensamentos, os homicídios,
os adultérios, as imoralidades sexuais, os roubos, os falsos testemunhos
e as blasfêmias” (Mt 15.18-19). Ao seguirmos Jesus, reconhecemos quem
somos e, na busca por uma nova significação da vida, passamos por um
processo de “lavagem interior”.
Contudo, como não somos
indivíduos isolados da nossa história e contexto, este não é um processo
individual. Somos, em grande parte, nossa história e nosso contexto.
Criamos e impomos costumes e tradições que fazem parte da teia social
que promove e também aprisiona a vida. Algo que foi constituído para
facilitar e sustentar pode ser usado para escravizar, entristecer e
empobrecer. Isso pode ser visto tanto nos milenares grupos étnicos e
tribais quanto nas associações e aglomerados urbanos modernos. Jesus
detecta e denuncia esses mecanismos. Ao acusar alguns de seus
interlocutores de usar a tradição para deixar pai e mãe desprotegidos
(Mt 15.3-6), ele se vale da relação familiar para demonstrar como isso
acontece. Ao seguirmos Jesus, aprendemos a relativizar, não apenas
nossos vínculos de pertencimento, mas também nossos usos e costumes. Por
outro lado, ao segui-lo, experimentamos o sentido de resgate de nós
mesmos, dos nossos vínculos e da nossa própria cultura. Por meio desse
resgate, vemos aflorar o sentido tanto da família como do mandato
cultural, com o qual fomos agraciados por Deus desde a criação.
O
segundo movimento aponta, assim, para o resgate do sentido e da
importância da família. O mesmo Jesus que em dado momento relativiza sua
própria família, ao falar das tradições humanas, afirma o mandamento
que aponta para o cuidado com os pais. E na hora de sua morte
preocupa-se com a mãe e a entrega aos cuidados do discípulo João (Jo
19.27).
O evangelho não nos tira a família. Antes,
acrescenta a ela uma família maior, que é a família da fé. Em conversa
com os discípulos, Jesus aponta para essa realidade e lhes diz que serão
recompensados com “irmãos, e irmãs, e mães, e filhos, e campos” (Mc
10.28-30). Assim, o evangelho nos abraça com a formação de uma
comunidade que se nega a desenvolver tradições e costumes que encolham a
vida, explorem o outro e se transformem em estruturas discriminatórias.
O evangelho afirma opções de vida em que o interior é renovado e as
prioridades são revistas, a família tem seu lugar restaurado e uma nova
comunidade, com vocação de inclusão e de serviço em amor, emerge.
O
terceiro movimento abraça o excluído, o solitário e o abandonado e
resgata a dignidade da vida de cada um deles, como Jesus sempre fez.
Aliás, foi para isso que ele apontou quando reagiu aos seus irmãos e à
sua mãe, quando pretendiam buscá-lo e aprisioná-lo dentro de uma
estrutura que ele queria relativizar e expandir. É preciso enxergar além
da própria estrutura familiar; caso contrário, esta se torna
egocêntrica, cansativa e maçante. É preciso ver que há um mundo lá fora
que nos enriquece e desafia. Por isso Jesus diz que quem faz a vontade
de Deus passa a ser sua família (Mc 3.35). E diz isso tanto para seus
irmãos e sua mãe quanto para os que estavam ao seu redor. O segredo é
fazer a vontade de Deus, e esta inclui honrar pai e mãe, cuidar dos
filhos com amor, construir famílias integradas e belas e viver uma vida
de amor e serviço. A verdade e a realidade disto são medidas,
principalmente, a partir da maneira como se integra e se abraça o
pequeno e o excluído. E disso nunca podemos nos esquecer.
Valdir Steuernagel
• é teólogo sênior da Visão Mundial Internacional. Pastor luterano, é
um dos coordenadores da Aliança Cristã Evangélica Brasileira e um dos
diretores da Aliança Evangélica Mundial e do Movimento de Lausanne.
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