Um traço intrigante de alguns movimentos religiosos é o fato de
experimentarem transformações tão radicais ao longo de sua história a
ponto de se distanciarem por completo de suas convicções iniciais. Um
bom exemplo disso foi o que ocorreu com o puritanismo norte-americano.
Originalmente comprometido com uma fé profundamente bíblica e uma
espiritualidade fervorosa, algumas gerações mais tarde ele deu origem ao
movimento unitário, fruto do racionalismo iluminista. Diversos
observadores entendem que esse mesmo fenômeno está ocorrendo nos dias
atuais com o movimento evangélico ou evangelicalismo, não só nos Estados
Unidos, mas também no Brasil. Consciente ou inconscientemente,
segmentos evangélicos anteriormente conservadores, apegados à fé cristã
histórica, estão aos poucos abraçando pressupostos e atitudes
característicos do liberalismo teológico.
Antecedentes históricos
Até
o século 18, o protestantismo atribuiu grande importância à inspiração
divina, autoridade e suficiência das Escrituras, bem como a outras
convicções decorrentes desses fundamentos, preservando as ênfases dos
reformadores do século 16. Os princípios de “sola Scriptura” (somente a
Escritura), “tota Scriptura” (toda a Escritura) e o direito de livre
exame revitalizaram a igreja e transformaram sociedades inteiras.
Todavia, com o advento do Iluminismo, surgiu a tendência de embasar a
religiosidade e a fé em outras autoridades que não a Bíblia e os credos
cristãos históricos. Inicialmente, foi entronizada a razão,
concluindo-se que só podia ser aceito como verdade religiosa o que
pudesse ser demonstrado pelo intelecto humano. É o que se denominou
religião natural ou racional, cuja expressão mais conhecida foi o deísmo
inglês.
Posteriormente, o filósofo alemão Immanuel Kant mostrou
os limites da razão, relegando a religião ao âmbito exclusivo da
moralidade (“razão prática”). Embora as realidades transcendentes fossem
consideradas inacessíveis ao conhecimento humano, a crença em Deus foi
mantida como um suporte para o viver ético. No século 19, Friedrich
Scheiermacher, considerado o “pai da teologia liberal”, deu um passo
adiante ao definir a essência da religião como o senso de dependência
absoluta da realidade última. Agora, o critério da verdade passou a ser o
sentimento, a experiência subjetiva. Ele também relativizou a
importância do cristianismo, já que esse sentimento de dependência podia
existir em qualquer religião. Outro grande forjador da teologia
liberal, Albrecht Ritschl, apesar de ter atribuído maior valor à
Escritura e à fé cristã, manteve a ênfase ética em detrimento das
preocupações doutrinárias.
A segunda metade do século 19 assistiu
ao pleno florescimento do liberalismo teológico, caracterizado pelo
esforço de harmonizar o cristianismo com o pensamento, a arte e a
ciência contemporânea. O campo em que isso ficou mais evidente foi o
estudo da Escritura. A Bíblia passou a ser encarada desde uma
perspectiva naturalista, sendo negadas a sua inspiração e autoridade
divina. Ela deixou de ser vista como uma fonte de verdades eternas,
sendo apenas o registro culturalmente condicionado das experiências
religiosas do povo de Israel e dos primeiros cristãos. Jesus foi
considerado simplesmente um ser humano com profunda percepção das
realidades espirituais, um grande mestre moral e religioso. Esse
personagem histórico nada tinha a ver com o ente divino-humano, operador
de milagres e ressurreto dentre os mortos retratado nos Evangelhos, que
teria sido imaginado pela igreja primitiva (“o Cristo da fé”).
Surge o evangelicalismo
No
início do século 20, protestantes conservadores nos Estados Unidos
ficaram alarmados com o avanço do liberalismo ou modernismo teológico.
Como já havia ocorrido na Europa, a teologia liberal estava rapidamente
ocupando espaços nas igrejas e nos seminários norte-americanos. Ocorreu
nesse contexto a célebre controvérsia “modernista-fundamentalista”, na
qual os conservadores afirmaram enfaticamente a necessidade de preservar
as convicções cristãs históricas sobre as Escrituras e a pessoa de
Cristo, que eles criam estar sendo solapadas pelas novas ênfases
teológicas. John Gresham Machen, professor de Novo Testamento no
Seminário de Princeton e o representante mais culto do movimento
conservador, escreveu o livro “Cristianismo e Liberalismo” (1923),
argumentando que os termos desse título se referiam a duas religiões
inteiramente distintas.
Por defenderem doutrinas consideradas
fundamentais para a fé cristã, os conservadores ficaram conhecidos como
fundamentalistas. Infelizmente, alguns deles também começaram a insistir
numa questão não essencial, o dispensacionalismo, e a manifestar
atitudes intolerantes e cismáticas em relação aos que não concordavam
com eles. O movimento então se dividiu, ficando de um lado os radicais,
sob a liderança de Carl McIntire, e do outro, os evangélicos, mais
moderados, liderados por homens como Harold Ockenga, Carl F. Henry e
Billy Graham. Houve também uma versão européia do movimento, tendo à
frente John Stott, J. I. Packer, Martyn Lloyd-Jones e Francis Schaeffer,
entre outros.
O liberalismo clássico, caracterizado por seu
imenso otimismo quanto à bondade inata do ser humano e ao progresso
inexorável da humanidade, sofreu fortes abalos com a Primeira Guerra
Mundial e a neo-ortodoxia de Karl Barth, mas conseguiu sobreviver.
Embora muitos liberais fossem homens cultos e íntegros, sua teologia
contribuiu para que boa parte das igrejas da Europa e da América do
Norte perdesse sua identidade doutrinária, vitalidade espiritual e zelo
evangelístico. Durante algumas décadas, os evangélicos ou evangelicais
procuraram preservar esses valores por meio de suas igrejas,
instituições e publicações. Todavia, a partir dos anos 80, determinados
segmentos começaram a tomar rumos preocupantes.
O dilema atual
Autores
contemporâneos como David Wells (“Coragem de Ser Protestante”) e
Michael Horton (“Cristianismo sem Cristo”) têm soado um brado de alerta
quanto a algumas transformações recentes do evangelicalismo
norte-americano. Dois movimentos em especial geram apreensões: as
igrejas norteadas pelo marketing religioso e as chamadas igrejas
emergentes. Elas têm em comum uma forte ênfase antropocêntrica que torna
os desejos, as necessidades e as experiências humanas o critério
dominante da vida espiritual, e, em consequência disso, uma preocupação
cada vez menor com doutrinas, com convicções claras e firmes.
Como
sempre acontece, muitas igrejas evangélicas brasileiras têm sentido o
impacto dessas influências procedentes do hemisfério norte. O evangelho
da prosperidade e o pragmatismo religioso têm levado a uma preocupação
com o sucesso, com números, em detrimento da integridade bíblica e
teológica. Em muitos púlpitos já não se ouvem as doutrinas da graça, os
grandes temas da Reforma do Século 16, e sim mensagens condescendentes
de autoajuda psicológica. Afinal, é muito mais interessante ouvir um
sermão sobre como ser feliz e bem-sucedido do que sobre o pecado, a
justiça de Deus ou a santificação.
A falta de interesse por
questões doutrinárias tem levado um bom número de igrejas e líderes a
gradativamente abrirem espaços para a penetração de influências
liberais. Há vários anos, denominações históricas outrora conservadoras
vêm permitindo que instituições vitais, como os seus seminários, sejam
controladas por corpos docentes de orientação progressista.
Recentemente, até mesmo grupos pentecostais, na ânsia de encontrarem
professores pós-graduados para seus cursos de teologia reconhecidos pelo
governo e para programas de validação de diplomas, têm feito
contratações levando em conta apenas a titulação acadêmica e não as
preferências teológicas dos docentes. Em consequência, grande número de
pastores e leigos têm ficado expostos a conceitos doutrinários muito
diferentes daqueles adotados oficialmente por suas igrejas.
Conclusão
A
mentalidade pós-moderna se caracteriza pelo pluralismo, o relativismo e
o abandono de valores absolutos. No desejo de ser relevante, atual e
sintonizada com o mundo, a igreja corre o risco de fazer concessões
excessivas à sociedade e à cultura, comprometendo a integridade do
evangelho da graça. Nesse contexto, a teologia é um dos recursos mais
essenciais para a vitalidade do povo de Deus. Se ela for desprezada, a
vida devocional, o culto comunitário, o senso de missão e o testemunho
da fé perdem sua solidez e coerência. Por sua vez, sem olhar atentamente
para a Escritura, a história da igreja e as contribuições do passado, a
reflexão teológica se torna refém das opiniões subjetivas, dos modismos
flutuantes e dos ditames culturais de cada geração. Que as igrejas
evangélicas do Brasil possam retornar às suas raízes, à herança dos
reformadores, aplicando-a com fidelidade, sabedoria e sensibilidade aos
complexos problemas e carências dos dias atuais.
• Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e “Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil”.
asdm@mackenzie.com.br
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