Há
uma grande diferença entre amar toda a criação de Deus e amar “este
século” (ou ao “mundo”, palavra que ainda nos causa confusão). Defino
aqui mundo como a produção humana e seu conjunto de
experiências que acabam tornando a vida uma loucura, sem espaço para
Deus; uma auto-suficiência idólatra onde as pessoas agem como se elas
fossem deuses, criando um sistema de vida viciado na busca pelo prazer
individual e no pleno exercício da ganância; o humanismo secular.
Logo,
alguns concluem que devemos nos proteger de toda essa mazela mundana. A
implementação disto seria, portanto, viver em uma comunidade isolada e
cujo centro é a estrutura eclesial. Criaríamos um gueto alternativo que
se exime dos processos da vida social, à margem dos espaços públicos de
construção e manutenção, visto que são estruturas possuídas pelo maligno
e se envolver implicaria em apaixonar-se por elas, em se misturar com o
profano. Sem falar na perda de tempo em tratar de assuntos que não os
levaria a um encontro com o “divino”. Outra consequência seria o
esmagamento das culturas, a demonização das expressões artísticas e o
empobrecimento intelectual. O que resta é uma espiritualização mística
doentia fruto de uma polarização platônica e maniqueísta, onde tudo que
de louvável existe está no metafísico.
Tudo isto não
passa de um grande equívoco. O medo da vã paixão não pode paralisar o
amor pela criação de Deus, nem deve ser desculpa para nos eximirmos de
nossa co-responsabilidade na redenção de todas as coisas. O verdadeiro
amor é capaz de nos mobilizar para superar o medo e seguir adiante,
exercendo nossa mui santa vocação cristã: a de transformar a sociedade.
Lutamos
pela transformação da sociedade não porque estamos apaixonados por este
mundo, mas porque o cidadão do Reino deve provocar uma influência
benéfica natural no lugar onde está. Faz parte de quem o cristão é agir
de forma construtiva, sinalizar o Reino e a esperança através do amor. A
misericórdia ativa e globalizada está no “DNA” dos filhos de Deus.
Somos
tentados diariamente a agir como Demas (2 Tm 4.10), a abandonar o
front, esquecer da realidade futura do reino. Esquecemos que há um lugar
preparado para nós ao qual nenhum lugar se compara e que nenhum homem é
capaz de conjecturar. Somos tentados a esquecer que as estruturas deste
mundo devem ser transformadas porque são más, que sua aparente beleza e
auto-suficiência não passam de engano mortal.
Nosso
lugar não é na fuga alienante da realidade, mas também não é na paixão
por ela (ou na suposta possibilidade de viver uma vida maravilhosa
distante de Deus), mas na intervenção transformadora, cumprindo o
propósito para qual fomos criados, que é caminhar com o mestre fazendo
boas obras de misericórdia.
Não amar este século não quer
dizer renunciar à felicidade, tampouco deixar de apreciar o que é belo
nesta terra, mas saber admirar a criação sem se deixar dominar por
ela. Aproveitar cada segundo desta vida olhando através das lentes do
próprio Criador, e estar pronto para deixá-la quando Ele assim o quiser.
A espiritualidade cristã consiste em humildemente amar a si e amar toda
criação de Deus, sem a pretensão de ofuscar o brilho da glória de Deus,
de onde emanam todas as coisas realmente belas.
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Eric Rodrigues, 27 anos, é pastor anglicano, obreiro da escola Avalanche Missões Urbanas, articulador da Rede FALE e faz parte da coordenação estadual do Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL)
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