Estava conversando com um amigo sobre o sermão que ele havia pregado
a partir da parábola do trigo e do joio. A parábola em que Jesus diz
que Deus semeou as pessoas boas e o Diabo semeou as pessoas más.
Significando que há seres humanos que, na vida, se aliam a Deus para
fazer o bem, enquanto outros se aliam ao Diabo para fazer o mal.
Os
que são tidos como joio, são os que vivem de maldade em maldade sem
nenhuma reserva moral. Segundo Cristo este grupo de pessoas continuará o
seu caminho e só será separado no final, no dia do grande juízo, isto
porque não é tão fácil distingui-los, eles podem se parecer com o trigo
por boa parte do tempo.
Começamos a nos perguntar quem seria o
joio? E, enquanto analisávamos as várias possibilidades, o caso de
barbárie cometida contra o menino João Hélio invadiu nossa conversa e se
impôs, afinal, estamos diante do mais profundo significado do que seria
a maldade, a barbárie.
Quem seria o joio nesse caso tão brutal?
Um
grupo de jovens sai munido de revolveres de brinquedo para conseguir
dinheiro para o consumo de drogas, e acabam por provocar uma tragédia
que comove toda a nação.
Gente que sai munido de arma de
brinquedo, por acaso sai premeditando um desastre, uma tragédia, uma
barbárie? Parece-me difícil pensar que sim. Causa mais a impressão de
que as coisas saíram de controle e, então, a barbárie.
Não há
desculpas, eles precisam ser responsabilizados. Mas quem é o joio? Quem
está provocando esse estado de coisas que cria a pressão necessária para
um ato dessa natureza?
Por que esses moços estão nas drogas? A
quem devem? Por que tanto desespero? O que parece ter-lhes tirado toda a
sensibilidade? O medo do linchamento? A conclusão de que se fossem
alcançados seriam mortos sem misericórdia? Teriam chegado à conclusão
terrível de que eram eles ou o menino? No que esses rapazes estão
inseridos?
Quem é o joio? Como eles se tornaram
viciados? Quem lhes levou à droga? A quem estariam devendo ao ponto do
desespero? E quem trouxe a droga ao seu fornecedor? Como esse comércio
se mantém inabalável? Como conseguem trazer os produtos que vendem? Por
que não adianta prendê-los? Eles continuam a gerir os seus negócios de
dentro das prisões. Aliás, as prisões se tornaram quartéis generais de
grupos cada vez mais organizados? Como um estado paralelo consegue se
desenvolver sem a conivência do estado oficial?
Quem é o joio?
É
sempre mais fácil apelar para as soluções que parecem mais simples.
Afinal, temos os responsáveis, eles confessaram. Mas, isso é assim tão
simples? Executá-los seja de que forma for resolverá o problema? A
violência de que são responsáveis reside neles mesmos, de modo que basta
pará-los? Ou serão eles apenas a ponta de uma complexa máquina de
maldades fomentada pelo lucro fácil, por um estado conivente e por toda
sorte de corrupção da máquina pública?
Quem é o joio? Mais
uma vez fala-se sobre a diminuição da idade para a responsabilização
criminal. Então, a idéia é encher as cadeias de meninos e meninas
menores de dezoito anos? Certamente não é para diminuirmos os crimes.
Nossas instituições prisionais estão abarrotadas, não há espaço. Há um
considerável número de condenados que simplesmente não podem ser presos
por falta de lugar. Celas para quatro pessoas abrigam mais de uma
centena. Ouvi que o juiz, que está cuidando do caso, proporá que os
menores devem ser reclusos por cinco anos ao invés de três anos, como
reza a lei. A justificava dele é que serão melhor recuperados pelas
medidas sócio-educativas de que serão alvo nesse tempo. De que medidas
sócio-educativas ele está falando? Do que acontece nos institutos de
reclusão de menores, como na antiga Febem, em São Paulo, agora chamada
de Casa? Como se mudar o nome de uma anomalia a tornasse menos anômala.
Quem é o joio?
Estamos
todos de luto, sem dúvida! Mas, já não deveríamos ter vestido luto
quando meros trabalhadores foram incinerados dentro dos veículos que são
obrigados a utilizar para se deslocarem? Como esses pobres seres
humanos se chamavam? Alguém se lembra? Já não deveríamos ter feito
passeatas por eles? Os responsáveis por esses crimes contra os
trabalhadores pobres não saíram com armas de brinquedo, eram tão ou mais
jovens dos que os responsáveis pela barbárie que nos escandalizou. Eles
estavam sob comando, haviam recebido uma ordem cruel, e encheram a
cabeça com toda sorte de alucinógenos para poder cumpri-la. Quem deu a
ordem? Por que não foram responsabilizados? Os criminosos devem ser
plenamente responsabilizados, mas não é tão simples reunir todos os
criminosos. É mais fácil punir os mais próximos, e eles devem ser
punidos, mas não importa quão rigorosa seja a punição que recebam, não
será esta punição que interromperá a violência.
Tenho ouvido de
muitos, sobre esse caso: os próprios presos darão um jeito neles, eles
vão ver só. Como não há pena capital no país, aceita-se a punição
paralela, impetrada pelos próprios reclusos como execução da justiça,
sancionando-se, assim, a existência do estado paralelo. Estamos de luto!
Mas já deveríamos estar trajando o negro há muito tempo.
Principalmente, pela sociedade que temos construído nesse país; pelo
sistema econômico que temos implantado; pelo nível de injustiça social
com que convivemos sem crise. Pelo comportamento de nossos governantes
em todas as esferas do Estado. Pelo nível de corrupção da máquina
estatal.
Certamente, temos uma boa idéia sobre quem ou o que
seja o joio. Caçar o joio, entretanto, não parece ser nada simples. E
com que armas se caça o joio? Podemos começar por um projeto educacional
sério. Um grande colégio em São Paulo colocou uma extensão de sua
unidade na favela próxima às suas instalações, de modo a, de alguma
maneira, beneficiar aquela comunidade carente, as crianças desta teriam
os mesmos professores e matérias que os membros da elite, que freqüentam
a grande escola. É prática dessa instituição promover uma maratona de
matemática entres os alunos de suas várias unidades, e a extensão na
comunidade carente foi incluída. E, para espanto geral, foi um de seus
alunos, um jovem da raça negra, quem mais se destacou obtendo o segundo
lugar no certame, que reuniu as mentes mais privilegiadas. Quantos
gênios estão escondidos nas comunidades carentes? Quantos teriam suas
vidas mudadas se, simplesmente, fossem apresentados à aventura do
estudo, ao extraordinário mundo dos livros.
Os alemães e os
italianos acabaram com os grupos terroristas niilistas (termo que vem da
palavra latina Nihil, que significa Nada). Esse novo terrorismo sem
propósito político, que campeia nos tempos atuais, teve como precursores
dois grupos: o alemão, Baader Meinhof e o italiano Brigada Vermelha. As
respectivas polícias conseguiram sem desrespeito à lei, erradicá-los.
Por que a nossa polícia não conseguiria erradicar esses grupos
para-estatais em nosso território? Essa máquina deve e pode ser
destruída. Os italianos conseguiram, também, enfraquecer de forma
impressionante o crime organizado, que entre eles já fazia parte do
folclore sobre o que significava ser italiano. Por que nosso aparato
policial não o conseguiria. É certo que na Itália eles contaram com um
judiciário incorruptível, muitos juizes perderam a vida para curar a
sociedade italiana desse câncer. Por que o nosso judiciário não o faria?
É verdade que a vitória, tanto dos italianos como dos alemães, foi
conquistada por uma polícia marcada pela inteligência, pela seriedade e
pela incorruptibilidade. Por que nossa policia não o conseguiria? A
repressão inteligente e séria ao crime organizado é forma eficaz de
erradicar o joio.
A questão do combate à violência passa pela
redução da maioridade legal ou pela repressão eficaz às maiorias que
aliciam os menores?
E que dizer de termos um projeto sério de
redistribuição de renda? Como convencer adolescentes de que eles, sem
oportunidades, devem se contentar em repetir a história de seus pais,
que trabalham como poucos trabalhadores das nações modernas, para ver,
no final do mês, o seu parco salário ser insuficiente para pagar suas
irrisórias contas? Por que não lutamos por um programa sério de
recuperação salarial? Por que não enfrentamos a realidade de um país com
um dos menores índices demográficos, isto é, com um número pequeno de
habitantes por quilometro quadrado, mas a maior concentração urbana do
planeta. Cerca de oitenta e cinco por cento dos habitantes do Brasil
moram em cidades. Como se explica isso num país com tanta extensão de
terra? Basta lembrar que temos cerca de cento e oitenta milhões de
habitantes num território maior que o território da Índia, que tem mais
de um bilhão de habitantes.
Por que não temos um programa sério
de reforma agrária? E que dizer do enorme número de gente sem teto em
nossas cidades, quando há prédios totalmente vazios em nossas cidades; e
terrenos ociosos por conta da especulação imobiliária? Por que não
temos um programa habitacional que se possa ao menos chamar de sério? Há
hoje no país uma febre pelo crescimento econômico. Você sabia que o
Brasil foi o país que mais cresceu no mundo no século passado? De que
crescimento estamos falando? Qual o crescimento de que realmente
precisamos?
Será que a resposta à possibilidade da barbárie é
reduzirmos a maioridade legal, ou termos o crescimento que fomente a
justiça, de modo que nossas crianças possam, de fato, crescer?
Há
um joio na sociedade brasileira, porém, é um joio diferente do que
Cristo descreveu em sua parábola. O joio de que Jesus Cristo falou só
poderá ser colhido, arrancado do campo da vida no juízo final. O joio de
que estamos tratando nessa terra varonil pode ser exterminado agora.
Contudo, essa erva daninha não pode ser extinta jogando sobre os seus
peões o peso de sua existência. Não é caçando jovens que erradicaremos a
violência. Temos uma máquina complexa para desmontar, ela se parece com
um polvo, seus tentáculos visitam todas as atividades da sociedade; sua
cabeça habita nos palácios, e movimenta milhões de reais. Para
erradicá-la é preciso destruir suas fontes de abastecimento. Ela se
abastece da pobreza, da miséria; da injustiça social; da falta de
programas educacionais eficazes e abrangentes; da ineficácia do Estado,
assim como de sua fragilidade frente a possibilidade da corrupção; da
concentração de renda, e de terras e de tetos, e de possibilidades.
Estamos
de luto! E por razão mais do que justa. Como não ficar indignado frente
a tal violência? Como não ficar indignado frente a um sofrimento
estúpido como o infringido a esta criança inocente? E como não se
desesperar frente a capacidade humana de perpetrar o mal? Entretanto,
como diz a Bíblia: “A ira do homem não produz a justiça de Deus.” Em
nossa ira sofremos a tentação de desejar que os bandidos, que estão na
mesma cadeia dos rapazes, os matem. Em nossa ira começamos a falar de
punir os nossos jovens com mais rigor, quando deveríamos falar em
salvá-los desse monstro que temos deixado crescer por cerca de
quinhentos anos. Assim não se faz justiça, apenas se dá lugar à
vingança. E com vingança não se constrói nação alguma. A vingança faz o
trigo se igualar ao joio.
Que a morte desse inocente se torne o
motor de uma tomada de consciência que nos leve a consertar a nossa
nação. Que nos leve a repudiar toda a sorte de desperdício, e de
corrupção. Que nos leve a não tolerar mais a pobreza; e o analfabetismo;
e o crime organizado; e a ineficiência do Estado; e a
irresponsabilidade de nossos políticos. Até quando seremos uma nação que
quando começa a falar em crescimento, começa a dizer da necessidade de
destruir parte de nossas florestas e de prejudicar indígenas e
quilombolas? Que quando começa a falar de justiça começa a falar em
punir jovens, reconhecendo que já que os condenamos a ser bandidos que
os prendamos o mais cedo possível? Que nos levantemos contra a máquina
que trucida esses peões e erradiquemos as fontes de suprimento desse
monstro, antes que tenhamos de concluir que o joio somos nós.
• Ariovaldo Ramos é pastor, bacharel em filosofia pela USP e presidente da Visão Mundial.
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