Sentado sobre a maca, em um hospital em caos, o pequeno olha para a
câmera. Os cabelos estão endurecidos pela poeira. O sangue mancha sua
testa e escorre até os olhos. Estes contêm um misto de perplexidade e
distância. Ele deve ter dois anos de idade. Suas pequenas mãos, mãos de
um quase bebê, são mostradas em close. Estão paradas, os dedos se
movimentando de forma ritmada, talvez em busca de uma harmonia há muito
perdida.
O título da matéria é: "Aleppo é um lugar onde as crianças pararam de chorar."
Impressiona
o fato da criança não chorar. São os adultos que choram. Ela os vê, um,
dois, três, muitos, e permanece em silêncio, provavelmente olhando para
dentro de si em busca de um mundo inexistente, que certamente não mais
retornará, como seus pais, mortos em um bombardeio.
A cidade mais
populosa da Síria encontra-se em ruínas. Tropas pró governo e rebeldes
lutam. O governo, para conquistar a cidade. Os rebeldes, para manter os
poucos pontos onde ainda estão em vantagem. Em meio às batalhas, uma
mortandade sem fim espalha corpos de civis entre destroços e ruas.
Muitos corpos são pequenos, de crianças que um dia brincaram pelas ruas,
que um dia sonharam em ser gente grande. Hoje, seus pequenos corpos
estão estendidos inertes por toda a cidade, transformada em um grande e
terrível cemitério ao ar livre.
A morte de civis é inaceitável. A morte de crianças é uma monstruosidade.
O
choro de mães e pais ecoa um antigo choro. O de Raquel, simbolizando as
mães de Israel que choraram seus filhos que haviam sido levados para o
exílio babilônico (Jr 31.15), e mais à frente, o choro de mães belemitas
que choram a morte de seus filhos pelos soldados de Herodes (Mt
2.2.16-18).
Herodes pretendia matar o menino Jesus. Mas foi
enganado pelos magos e pelos pais de Jesus, que, avisados pelo anjo,
fugiram para o Egito.
Jesus escapou da mortandade. Seus pais
conseguiram fugir. Jesus chorou? Certamente, diante da pressa da fuga,
de situações de desconforto e perigo para um recém-nascido. José e Maria
choraram? Muito provavelmente, frente à maldade de Herodes, frente às
incertezas da fuga e da vida em um país estranho.
Eles sabiam que Herodes era o inimigo. Também sabiam que os magos eram amigos, e os anjos, mensageiros de Deus para salvá-los.
As crianças em Aleppo não sabem nada.
De
onde vem as bombas que desintegram seus pais, irmãos e amigos? Quem
alveja suas casas? Estarão vivos no próximo dia ou, na manhã seguinte, a
casa ou apartamento onde moram simplesmente se resumirá a escombros,
caixão desajeitado para seus pequenos corpos?
Quem são os amigos?
Ainda existem amigos? Por que não vem salvá-las? Por que não impedem
que bombas caiam? Por que não as colocam em carros e as levam para longe
do inferno? Por que não as conduzem ao encontro de seus pais e irmãos,
ainda que esse seja um pedido impossível de ser atendido?
As
crianças em Aleppo não conseguem chorar. Esqueceram como se chora? As
lágrimas secaram? Estão acostumadas com a brutalidade diária?
Elas olham atônitas, com olhos embaçados, cenas infernais se desenrolarem como um filme de terror.
O menino Jesus está em Aleppo. As mães choram os filhos que já não existem.
• João Leonel
é graduado em Teologia e Letras. Mestre em Ciências da Religião pela
Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Doutor em Teoria e História
Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pós-doutor
em História da Leitura pela Universidade Nova de Lisboa, Portugal.
Professor no Seminário Presbiteriano do Sul, Campinas (SP), e na
graduação e pós-graduação em Letras, Universidade Presbiteriana
Mackenzie, SP
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