A revista Veja
visitou a penitenciária onde o conhecido ex-goleiro do Flamengo, Bruno
Fernandes – condenado há 22 de reclusão pelo assassinato da modelo Eliza
Samudio –, está preso e carrega as chaves da própria cela. Trata-se da
unidade da APAC – Associação de Proteção e Assistência aos Condenados
– em Santa Luzia, nas proximidades de Belo Horizonte. A matéria e a
entrevista com o ex-ídolo do Flamengo foram publicadas esta semana.
Ultimato
também visitou uma das 43 unidades da APAC no Brasil, na cidade de
Itaúna, uma das unidades de destaque no país. Em 2015, o jornalista e
fundador da revista Ultimato, pastor Elben César,
passou dois dias com os ‘recuperandos’ e até dormiu nos aposentos da
APAC. Confira a reportagem do “Mineiro com cara de Matuto”.
O Mineiro com Cara de Matuto na APAC de Itaúna
A ponte que Deus construiu para os criminosos chegarem a ele
Por Elben César
J.
K. Rowling, autora da série Harry Potter, diz que “a pior coisa do
mundo é o encarceramento”. E o autor da epístola aos Hebreus ordena:
“Não se esqueçam daqueles que estão na prisão. Sofram com eles, como se
vocês próprios estivessem aprisionados com eles” (13.3).
Por
causa dessa passagem bíblica, o Mineiro com Cara de Matuto pediu a ajuda
do advogado Antonio Carlos da Rosa Silva Junior, especializado em
ciências penais e em direito e relações familiares e autor do livro
“Deus na Prisão”, para ser preso por dois dias em uma penitenciária de
Juiz de Fora, MG, a mais próxima de sua casa. Porém, Antonio Carlos
achou por bem indicar não uma penitenciária, mas a APAC de Itaúna, uma
cidade a 85 quilômetros de Belo Horizonte, onde fica a Universidade de
Itaúna. APAC é a sigla de Associação de Proteção e Assistência aos
Condenados e tem como objetivo a humanização das prisões, sem perder de
vista a finalidade punitiva da pena. Seu propósito é evitar a
reincidência no crime e oferecer alternativas para o condenado se
recuperar.
No dia 3 de novembro de 2014, o Mineiro apertou a
campainha da APAC de Itaúna. Logo ao chegar, ele encontrou a voluntária
Vera Lúcia, uma extrovertida cadeirante de 64 anos, formada em ciências
econômicas, irmã de seis Marias e tia de duas gêmeas idênticas, formadas
na Universidade Federal de Viçosa (UFV) e hoje missionárias católicas,
uma em Luxemburgo e outra na Polônia. Ela tinha apenas 12 anos quando um
caminhão em marcha a ré esmagou suas pernas.
A ala feminina da APAC
O
contato que o Mineiro teve com as recuperandas do regime semiaberto foi
muito positivo. Depois de ouvi-las, ele contou a história do desabafo
de Ana, uma mulher que havia perdido a vontade de comer e tinha o
semblante triste antes de chorar amargamente diante de Deus e de clamar a
ele por se sentir desesperada com os problemas domésticos. Ele fez
questão de frisar que o semblante de Ana não era mais triste depois de
sua longa e fervorosa oração (1Sm 1.18). Depois, orou com elas e por
elas.
Quase todas cumprem pena por tráfico de drogas. Mas Daiane,
de 24 anos, assassinou o companheiro quando tinha 19. Ela está na APAC
há quase quatro anos e tem mais sete anos e meio para cumprir a pena
toda. Daiane parece muito sincera, tem buscado muito a Deus e confessa
que ele “é a base de tudo na minha recuperação”. Mesmo detida, ela está
fazendo um curso superior e procura se profissionalizar.
Ao lado
de Daiane estava Savana, de 27 anos, casada, mãe de duas crianças. Ela
conviveu num ambiente favorável ao crime desde a idade de 5, “amigou” e
começou a traficar aos 12. Cumpre a terceira prisão. Jeniffer, de 31,
tinha um bonito nenê de poucos meses no colo, que ela diz ser “o quarto e
o último”.
O Mineiro se encontrou com estas mulheres numa
varanda no andar de baixo da instituição. Elas estavam trabalhando em
artesanato. Quando chegou ao andar de cima, onde ficam as recuperandas
do regime fechado, elas estavam tomando café e comendo sonhos, feitos
por elas mesmas. O que havia dito no andar de baixo o Mineiro repetiu.
O dinheiro fácil não é fácil
Quem
abriu o portão para o Mineiro sair da residência das recuperandas (as
palavras cadeia, prisão ou penitenciária são evitadas) foi Keila
Cristina, uma mulher de 31 anos, mãe de três filhos e membro da Igreja
Evangélica Betel. Ela permaneceu presa por quase cinco anos. Onze meses
depois de solta, voltou ao tráfico e cumpriu mais três anos e meio de
detenção. Hoje é encarregada da segurança na ala feminina. Quem levou o
Mineiro de volta à ala masculina foi Maria Inês. Ela é apaixonada pela
APAC e tem toda razão. Seu primeiro contato com a organização foi em
2010 como evangelista da Igreja Presbiteriana Renovada de Itaúna. Pouco
depois, tornou-se funcionária, primeiro como plantonista, depois como
motorista.
O recuperando Geraldo Magela, 30 anos, foi muito
delicado com o Mineiro, conduzindo-o para aqui e acolá. Por sua
aparência, ninguém desconfiaria que ele está há três anos privado de
liberdade por causa de um assalto a mão armada ocorrido em Itaúna. O
jovem está procurando a Deus porque “se nem um abutre sobrevive no
deserto, muito menos eu sobreviveria sem Deus”. Geraldo afirma convicto
que se o crime desse dinheiro ele seria milionário. Além de cuidar da
cantina, o rapaz é presidente do Conselho de Sinceridade e Solidariedade
da APAC masculina.
Depois do jantar, foi a vez de conhecer os
aposentos dos apaqueanos do regime aberto. Eles podem passar o dia em
liberdade, mas não podem beber nem usar qualquer tipo de droga e têm de
estar de volta impreterivelmente às 19 horas. Ao chegar, passam pelo
teste do bafômetro. Um deles, Reinaldo, de 39 anos, casado, cinco
filhos, escreveu no questionário: “Hoje o crime não me seduz mais.
Aprendi que o dinheiro fácil não é fácil. Ele me faz sofrer e leva ao
sofrimento aqueles que me amam”. Outro, Michael, de apenas 19 anos, até
parece conhecer a doutrina da justificação, pois diz que não pede perdão
a Deus “porque ele já me perdoou”. De fato, Paulo explica: “Ao aceitar,
pela fé, o que Deus sempre desejou para nós – consertar nossa situação
com ele, tornar-nos prontos para ele –, alcançamos tudo isso com Deus
por causa do nosso Senhor Jesus” (Rm 5.1). O problema é que, além do
perdão por atacado, Michael e todos os viventes precisam continuamente
do perdão diário (1Jo 2.1).
Uma porta, e não uma janela
Em
84 anos, foi a primeira vez que o Mineiro com Cara de Matuto dormiu num
lugar do qual ele próprio não tinha a chave. No dia seguinte, 4 de
novembro, antes de tomar café com os apaqueanos do regime semiaberto,
ele fez a sua costumeira oração e leu o Salmo 132. O último versículo
diz que a coroa do Filho de Davi “vai brilhar cada vez mais”. Então se
lembrou de Provérbios 4.18-19: “A estrada em que caminham as pessoas
direitas é como a luz da aurora, que brilha cada vez mais até ser dia
claro. Mas a estrada dos maus é escura como a noite; eles caem e não
podem ver no que foi que tropeçaram”. Ele tem certeza de que a APAC está
ajudando de maneira correta homens e mulheres a sair da estrada escura e
passar para a estrada cuja luz brilha cada vez mais.
No
refeitório, ninguém foi tomando o seu café de qualquer jeito. Havia
cerca de cinquenta pessoas. Todas obedecem ao ritual religioso de todas
as manhãs: o cântico Bom dia, Jesus, a leitura de duas orações (a Oração
do Amanhecer e a Oração do Recuperando), a leitura da passagem bíblica
que fala sobre a plenitude da salvação (Fp 2.5-11), a recitação do
Pai-Nosso e da Ave-Maria e a leitura do Termo de Adesão. Por ser algo
repetitivo, é provável que nem todos percebam a riqueza das palavras
cantadas e recitadas. No cântico Bom dia, Jesus, os recuperandos entoam:
Desviei do seu caminho
E caí na tentação
O Diabo me laçou
Mas Jesus me deu perdão!
Agora, estou liberto,
Vibrando com emoção,
De Jesus estou sempre perto
Com muita paz no coração.
Na
Oração do Amanhecer, eles pedem: “Reveste-me da tua beleza, Senhor, e
que, no decurso desse dia, eu te revele a todos”. Na Oração do
Recuperando, eles declaram: “Senhor Jesus, tu vieste para salvar o que
estava perdido, para dar chance de vida nova a todos, mediante o dom da
tua própria vida, como holocausto pela remissão do mundo”. Na leitura do
Termo de Adesão, eles repetem mais uma vez: “Firmo o presente termo
comprometendo-me, assim, a não usar drogas e a lutar por todos os meios
possíveis para que outros recuperandos não usem, além de vigiar
diariamente para que não entre drogas na APAC”.
Na parte de trás
da camiseta de um apaqueano estava escrita uma mensagem eufórica: “Eu
pedi uma janela e Deus me abriu uma porta”.
O Jesus imatável
Logo
após o café, o Mineiro leu para eles a palavra categórica de Jesus:
“Ninguém tira a minha vida de mim, mas eu a dou por minha própria
vontade” (Jo 10.18). Explicou que Jesus era imatável e só morreu na
Sexta-Feira Santa porque se entregara por todos nós para tornar possível
o perdão do Pai.
“O que vocês desejam mais: voltar para casa ou
receber o perdão de Deus?” – perguntou o Mineiro. Sinceramente ou não,
todos foram unânimes: “Preferimos o perdão de Deus”.
Percebe-se
claramente a influência do evangelho no pensamento religioso de alguns
recuperandos. Guilherme Lúcio, por exemplo, de 26 anos, evangélico,
confessa-se pecador “desde quando nasci”. Ele e pelo menos outros dois
(Adelson e Lucas) afirmam que a religião em si não salva ninguém. Outro
evangélico de 19 anos completa dizendo que a sua recuperação depende de
aceitar Jesus e caminhar com ele. Leandro Divino, de 30 anos, casado,
pai de uma criança, não esconde que é um evangélico que “deixa muito a
desejar”.
Algemas nunca mais
Logo
após o demorado encontro com os recuperandos do regime semiaberto, o
Mineiro subiu para o andar de cima onde ficam os do regime fechado. Na
recepção estava escrito com todas as letras: “Na APAC as algemas só
voltam ao seu pulso por sua livre e espontânea vontade”.
No
auditório lotado, a professora Terezinha Morais da Silva dava uma aula
de valorização humana, com auxílio de slides: “O pessimista sempre
enxerga a vida com lentes embaçadas. Por isso para ele o tempo está
sempre nublado”.
Quando ela abriu espaço para alguma manifestação
dos recuperandos, Rubens, de 35 anos, casado, pai de gêmeas de 15 e de
outra menina de 5, levantou-se e disse: “Precisamos acertar o foco –
deixar de fazer a vontade da carne e fazer a vontade do Senhor”. Rubens
contou ao Mineiro que era usuário de crack e traficante. Aos 32 anos
cometeu homicídio e foi para a cadeia, onde ficou por um ano e meio e
onde veio a se converter. Está na APAC há apenas oito meses. Não teria
passado por essas desventuras se tivesse ouvido a esposa, que lhe
pregava o evangelho.
Jadir Lázaro, 39 anos e quatro filhos, pediu
ao Mineiro que fizesse uma oração por ele. Como muitos outros, ele tem
uma história triste. Depois de trabalhar por dezessete anos na mesma
empresa, numa única noite destruiu sua carreira e sua vida. Ele tem sete
anos e meio pela frente.
Quando a professora, que é batista,
terminou a aula, o Mineiro voltou a falar sobre o Jesus imatável, a
mesma mensagem que havia pregado logo após o café.
Chega a exatos
cem anos a soma das penas que somente os quinze recuperandos do regime
fechado ainda estão devendo à justiça terrena. Tiago, de 25 anos, tem
certeza de que só Deus pode tirar de sua mente todos os desejos
malignos. Flávio, também de 25, deseja muito fazer parte dos 85% dos
apaqueanos que não voltam ao crime para cuidar de seu filho, que tinha
apenas 1 ano quando o pai foi preso e agora está com 8.
Ao descer
do andar dos recuperandos do regime fechado, o Mineiro se encontrou com
um dos cozinheiros, que lhe disse: “Hoje tem moqueca de peixe no
almoço”. Ele se assentou ao lado de três rapazes do regime semiaberto e
de duas funcionárias para almoçar. Não havia mesas só para os
funcionários nem mesas só para os apaqueanos. Todos estavam juntos,
inclusive a professora de valorização humana. Ninguém começou a comer
antes da oração de gratidão e da recitação do Pai-Nosso. Depois do
almoço e de uma esticada na cama, o Mineiro com Cara de Matuto se
despediu da direção e voltou para Viçosa, dizendo com seus botões:
“Bem-aventurada é Itaúna, não por ser conhecida como Cidade
Universitária do Mundo, título conferido pela Unesco em 1975, mas por
causa de sua pioneira APAC, que, devido a sua projeção nacional e
internacional, é membro da Prison Fellowship International!”.
Texto publicado originalmente na edição 352 da revista Ultimato.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
COMENTÁRIOS