Chegamos à época do Natal em que celebramos a encarnação de Deus em
forma de homem. Mas será que em meio a tanta festa, temos consciência do
significado mais profundo desse evento histórico, particularmente para a
vida cristã?
C.S. Lewis sistematizou as implicações do fato de
Deus ter nascido em forma de homem em seu capítulo de “Cristianismo Puro
e Simples” que fala dos “obstinados” (tradução antiga que eu prefiro)
ou “teimosos” (tradução atual) soldadinhos de chumbo. Para início de
conversa, ele pede para lembrarmos de nossas fantasias de infância em
que imaginamos nossos brinquedos ganharem vida, como no Toy Story. É
essa a implicação da encarnação na vida do cristão: ela faz com que, de
soldadinhos de chumbo, nos tornemos seres de carne e osso, mesmo à nossa
revelia. A vida cristã é toda uma história de pinóquios, que sofrem das
dores da encarnação ou mutação decorrente da vivificação.
Esse
processo já foi iniciado em nosso favor. Não temos nada a fazer pela
nossa salvação, ela é dada pela graça. Nosso papel é permitir o processo
se dar, como no caso da transformação do Eustáquio- dragão de volta em
menino (“A Viagem do Peregrino da Alvorada”).
A limitação da
imagem do soldadinho de chumbo é a abrangência e alcance do evento único
que ocorreu no nascimento virginal, que contagiou toda a massa da
humanidade e do universo. Por meio da encarnação, da morte e da
ressurreição veio a salvação para toda a humanidade. Ser cristão é
deixar-se contagiar por esse processo de libertação e santificação.
Em
“Perelandra”, a segunda obra da trilogia espacial de Lewis (que começa
com “Longe do Planeta Silencioso” e termina com “Uma Força Medonha”), o
nascimento de Maleldil em forma humana foi um evento que repercutiu em
todo o universo e seus planetas.
Ou seja, um ser absoluto desceu ou
se tornou em um ser inferior para lançar nele a centelha da vida divina,
reacendendo o seu lado espiritual que estava morto desde a queda. E
esse processo permitiu que nós, cristãos, nos tornássemos, por imitação,
“pequenos cristos”, ou seja, que participássemos da natureza divina de
Cristo, inclusive de sua missão redentora.
Não há lugar em que
Lewis expressa essa ideia de forma mais clara do que nas “Crônicas de
Nárnia”, em que usou do recurso da suposição para imaginar como seria a
encarnação em um mundo como Nárnia. E inventou que ela se daria na forma
de um leão, um ser ainda mais elementar do que o ser humano.
Não
é por acaso que Aslam faz questão de se apresentar em toda a sua
materialidade às crianças e personagens de Nárnia. Nós sentimos o seu
bafo, seu pelo macio, suas patas - ora macias, ora ferozes - e a força
de seu rugido. Não se trata de nenhum ser meramente espiritual, mas
material e corpóreo.
Ele não é uma divindade distante que resolve
tudo na base da “patada” e do rugido, embora tivesse o poder para isso e
eventualmente também usasse a sua ferocidade, mas dá a sua vida
voluntariamente para pagar a dívida da traição, vence a morte e decide
fazer as crianças e os animais falantes participarem do seu plano de
resgate de Nárnia.
Vale nesse sentido citar a fala do leão que
foi convidado a liderar uma batalha ao lado de Aslam em “O Leão, a
Feiticeira e o Guarda-Roupa”:
–
Ouviu o que ele disse? Nós, os leões! Ele e eu! Nós, os leões! Por aí
você vê por que eu gosto tanto de Aslam. Não se põe lá em cima, não é de
bancar o importante. Nós, os leões! Ele e eu!
Esse é
também o sentido da polêmica vinda do Papai Noel na terra onde é sempre
inverno e nunca Natal desde a chegada da Feiticeira Branca, que coincide
com a vinda de Aslam. Ele traz presentes, que são ferramentas e não
brinquedos, que ajudarão as crianças a participarem das batalhas em
defesa de Nárnia.
Desejo que esse seja o espírito que contagie as
comemorações de Natal desse ano de 2015: o da imitação de Cristo e da
participação, no sentido da comunhão amorosa que é a marca da igreja em
meio a um mundo em que é cada vez mais inverno e menos Natal.
É mestre e doutora em educação (USP) e doutora em estudos da tradução (UFSC). É autora de O Senhor dos Anéis: da fantasia à ética e tradutora de Um Ano com C.S. Lewis e Deus em Questão. Costuma se identificar como missionária no mundo acadêmico. É criadora e editora do site www.cslewis.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário
COMENTÁRIOS