Para todos os efeitos, esse artigo vai se limitar a interpretação
formulada durante a Idade Média, não se envolvendo com a variada
terminologia – na maior parte das vezes divergente – que abrange a
Filosofia da Linguagem, a epistemologia atualmente e a reboque, a
Teologia.
Esse binômio, cunhado desde a Idade Média, remete com
certa naturalidade – devido talvez a vasta bibliografia consolidada a
respeito – a fazer uma associação genuína entre a filosofia e a
teologia. Embora essas disciplinas estejam muito bem delimitadas para
nós leitores e estudiosos contemporâneos das Escrituras Sagradas, nem
sempre foi assim.
A distinção entre um e outro conceito, a saber,
sabedoria e ciência, é um tema que vem se desenvolvendo e sendo
debatido desde o período em que a Filosofia Medieval estava em franco
desenvolvimento e a Teologia era ainda uma relativa novidade como
disciplina acadêmica. Dado que não havia a delimitação clara entre
filosofia e teologia, os autores medievais preferiam tratar por philosophia Christi
(a filosofia de Cristo) textos relacionados à espiritualidade, tanto
que muitos textos que somos levados a crer como teológicos tendem muito
mais a exortações morais ou reflexões sobre as Escrituras.
Para o próprio Agostinho de Hipona, o termo teologia soaria
completamente estranho, se comparado ao conceito estabelecido
atualmente. No seu antológico livro “A Cidade de Deus”, ele estabeleceu
um contraste entre a philosophia Christi e as três esferas da teologia pagã do filósofo Varro:
Teologia Civil, que era focada nas atividades de culto de vários grupos cívicos e étnicos;
Teologia Mítica, que englobava os mitos que tratavam dos deuses cantados por poetas como Homero e Hesíodo;
Teologia Natural, que considerava os argumentos dos filósofos a respeito da existência e natureza dos deuses.
Muito
embora a Teologia Natural provesse argumentos tipicamente filosóficos
que poderiam adequar-se ao pensamento cristão, Agostinho resistia quanto
à proeminência que pudessem ter entre os cristãos tal qual o faziam os
filósofos pagãos. Ele pensava numa espécie de escala hierárquica, cujo
ápice deveria coincidir unicamente com a elucidação das Escrituras, sem
espaço para nada além disso. Sobretudo, ele não negava a força e a
importância de uma argumentação sólida e bem estruturada herdadas da
filosofia, porém seu uso deveria se restringir, no máximo, a aclarar e
servir de apoio no entendimento da Revelação Divina.
Os temas da sabedoria (sapientia) e ciência (scientia)
dominavam e usufruíam de grande atenção até mais que a teologia e
filosofia enquanto disciplinas distintas no Período Medieval.
Para
uma elucidação satisfatória será preciso, a partir desse ponto, um
certo grau de abstração, demonstrando como se estruturava o pensamento
de Agostinho, para que a conclusão seja tão consistente quanto possível,
mas sua compreensão deve ser compensatória ao final.
Agostinho propunha uma visão do mundo, se assim poderia dizer, em três divisões hierárquicas; com o Deus Criador no topo, logo abaixo, no espaço intermediário, ocupado pelas criaturas angelicais e as almas, incluindo a mente humana; e na base
– ou hierarquicamente na posição mais inferior – estaria a vastidão do
mundo físico, mas ainda assim, boa, porque criada pelo Deus que é
sumamente bom. Para cada um desses níveis corresponderia uma relação, ou
princípio que explicaria sua estrutura e como os entendemos.
No nível do mundo físico ou natural, ele identificou os “princípios seminais“,
plantados por Deus no mundo criado e que dirigiam o desenvolvimento dos
corpos físicos. No nível da mente de Deus, ele identificou os
princípios eternos (rationes aeternae) tais como protótipos para tudo o que Ele cria. Como pensamentos da mente divina, eles são imutáveis, necessários e eternos.
Entre
os níveis inferiores e superiores da realidade, no nível intermediário
da realidade estariam as inteligências angelicais e a ratio hominis,
ou a alma racional humana. A posse de uma alma racional não só
distingue a essência humana e a inteligibilidade da natureza humana,
como também torna a mente humana capaz de entender outras coisas das
esferas da realidade, tanto acima como abaixo.
Dada sua posição intermediária, essa alma racional é capaz de entender as criaturas do mundo físico ou natural através da ratio inferior (razão inferior ou razão direcionada às coisas inferiores), bem como contemplar as razões eternas através da ratio superior (razão superior ou direcionada às coisas superiores).
Enquanto o objetivo da razão superior é a sabedoria (sapientia) alcançada através da contemplação, o objetivo da razão inferior é o conhecimento das coisas no mutável mundo do tempo (scientia). Esse tipo de conhecimento é mais restrito que a sabedoria e sujeito a erros, no entanto imprescindível para a vida prática.
Para
Agostinho a sabedoria já estaria mais associada ao conhecimento da
eterna e imutável verdade procedente da mente de Deus. As coisas
temporais estão ligadas ao tempo, sua corrupção e constante alteração,
antagonizando com a contemplação das coisas eternas. O primeiro ligado à
ciência (scientia) e o segundo à sabedoria (sapientia).
Quando
um discurso se refere às coisas temporais, corruptíveis e passageiras
ele se refere à ciência, no entanto, quando ele se refere às coisas, não
pelo que foram ou deveriam ser, mas pelo que são e continuarão sendo,
permanecendo inalteradas e imunes à corrupção do tempo, se refere à
sabedoria.
Coisas eternas permanecem, não como algo fixado em
algo, perceptível tal como um objeto, mas como algo inteligível
percebido na natureza incorpórea; tão evidentes à percepção da nossa
mente tanto quanto as coisas visíveis e tangíveis o são para os nossos
sentidos.
Posto que esse é o julgamento correto sobre a distinção
entre a sabedoria e a ciência e que o conhecimento intelectual das
coisas eternas pertence à sabedoria e o conhecimento racional pertence
às coisas mutáveis e corruptíveis, fica fácil deduzir por qual deles
deveria ser a preferência do cristão, quando nesse impasse.
Uma
outra conclusão de Agostinho é que a mente humana precisa estar em
harmonia com as ideias eternas – a saber o que procede de Deus – para
conhecer qualquer verdade necessária que seja. Já a ciência seria aquele
conhecimento metódico sobre a verdade, quando muito, das coisas desse
mundo que se mantém em constante mudança, por essa razão que a vida
voltada para o conhecimento das verdades eternas (sabedoria) é superior à
que se dedica ao conhecimento das coisas passageiras desse mundo.
A
superioridade da sabedoria está sobretudo na importância do seu fim
último. Ora, a partir dessa articulação, o percurso natural e evidente é
o desmembramento que ocorre a partir dessa hierarquização dos tipos de
conhecimento que acaba por subordinar a razão à fé. Porém Agostinho
nunca repudiou a razão em favor das emoções pura e simples, antes sua
proposta vinha para definir uma rota segura pela qual o cristão poderia
trilhar na esperança e certeza de atingir uma vida plena em harmonia com
as Escrituras Sagradas e o desejo do Eterno.
Sua famosa abordagem sobre a “fé em busca da compreensão” (fides quaerens intellectum)
sintetiza ambos os conceitos não como antitéticos, mas mostra uma
concepção na qual um conhecimento profundo da realidade seria o fruto
proporcionado pela fé.
De certo modo a ciência deveria conduzir à
sabedoria, mas infelizmente, são muitos os que se perdem pelo caminho,
apostatam da fé e terminam como incrédulos porque deixam os ruídos e
apetrechos do mundo entulharem corações e mentes, não sobrando espaço
para o conhecimento real e verdadeiro que não se corrompe, a saber, o
conhecimento do Eterno.
Não é à toa que o Salmista séculos antes já havia identificado isso: “Minha boca falará de sabedoria, e a meditação do meu coração será de entendimento” (Salmos 49:3).
Bibliografia
Cochrane, Charles Norris. Christianity and Classical Culture: A Study of Thought and Action from Augustus to Augustine. Indianapolis, IN: Liberty Fund.; 2003.
Randles, W. G. L. The Unmasking of the Medieval Christian Cosmos, 1500–5000: From Solid Heavens to Boundless Aether. Aldershott: Ashgate; 1999.
O’Daly, Gerard. Augustine’s Philosophy of Mind. Berkeley, CA: University of California; 1987.
O’Connell, Robert. The Origin of the Soul in St Augustine’s Later Works. Bronx, NY: Fordham University Press; 1987.
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