Martinho Lutero jamais pretendeu tornar-se o centro das atenções. Era um
estudante de direito atormentado por uma angústia. Tinha consciência de
que não conseguia ser o que Deus queria que ele fosse. Sabia-se
endividado diante de Deus. Em 1505 ele entrou num convento com hábitos
rigorosos para obter a certeza do perdão divino. Essa recomendação da
igreja medieval dava a todos que a buscavam. Assim, abdicou ao mundo e
submeteu-se aos exercícios espirituais com extremo rigor. No entanto,
isso não aliviou sua angústia. Pelo contrário, a potenciou. Seu
superior, não sabendo mais o que lhe recomendar, ordenou que se
dedicasse ao estudo da Bíblia. Assim, em 1512, Lutero tornou-se
professor de Bíblia numa universidade provinciana onde começou a dar
aulas sobre os Salmos.
No preparo dessas aulas Lutero foi
surpreendido por uma afirmação do Salmo 31: “Em ti, Senhor, me refugio;
nunca permitas que eu seja humilhado; livra-me pela tua justiça”.
Percebeu que o salmista não clamava “livra-me pela minha justiça”, mas
que ele pedia a Deus “livra-me pela tua justiça”. Começou a se dar conta
que a libertação da inclinação para o mal não resultava da justiça que
nós produzimos. Descobriu que ela procede da justiça que Deus oferece
gratuitamente por meio de Jesus Cristo. Quase 40 anos mais tarde o
reformador recordaria o impacto deste aprendizado: “Dia e noite eu
desejava entender Paulo em Romanos; noite e dia ponderei até perceber a
conexão entre a justiça de Deus e a afirmação de que o ‘justo vive pela
fé’. Então eu entendi que a justiça de Deus é aquela pela qual Deus nos
justifica na graça e pura misericórdia. Eu me senti completamente
renascido e acolhido pelas portas abertas no paraíso. Toda a Escritura
adquiriu um novo significado: se antes (a menção da) ‘justiça de Deus'
me enchia de ódio, agora tornou-se indescritivelmente doce e amável.
Esta afirmação de Paulo tornou-se para mim num portal do paraíso.”
Só
em 1517 Lutero viria a público com este seu aprendizado pessoal. E ele o
fez motivado por uma situação pastoral, pois encontrara um membro da
igreja alcoolizado cuja confissão havia ouvido poucos dias antes. Quando
Lutero questionou seu comportamento, o bêbado justificou-se,
apresentando a indulgência, uma certidão emitida pela igreja que
garantia perdão dos pecados a quem a comprava. Indignado, Lutero redigiu
então as “95 Teses” sobre o verdadeiro arrependimento. Elas eram um
roteiro para debater o assunto em sala de aula. Como de costume
afixou-as na porta da igreja que funcionava como edital de avisos da
faculdade. De lá as “95 Teses” viralizaram. Viraram panfleto impresso
aos milhares. Em poucas semanas seriam conhecidas por toda Europa, de
Roma a Londres, de Madrid e Paris a Praga.
É verdade que depois
outros interesses se conectaram e, não poucas vezes, sobrepujaram esse
propósito de restaurar a fé na boa notícia da salvação graciosa por meio
de Jesus. Ainda que a Reforma tenha impactado a estrutura eclesiástica,
interferido na política e na economia da Europa, não se pode esquecer
que ela se originou desta resposta à pergunta pela certeza da salvação
que afligia a muitos. Apenas esta aflição generalizada explica o impacto
do testemunho da Reforma.
Por causa desse foco, nem Lutero nem
qualquer outra liderança da Reforma – Zwinglio, Bucer, Menon, Calvino,
etc –, postularam direitos autorais pela redescoberta da graça.
Entenderam-se como meros instrumentos pelos quais Deus estava
restaurando sua igreja. Lutero manifestou-se explicitamente sobre isso
no prefácio da primeira edição alemã de suas obras: “Antes de tudo peço
que não mencionem o meu nome e nem se chamem de luteranos, mas de
cristãos. Quem é Lutero? A doutrina não é minha. Também não fui
crucificado por ninguém. Em 1Coríntios 1 São Paulo não tolerou que se
chamasse os cristãos de paulinos ou petrinos, mas (deveriam chamar-se
apenas) cristãos. Como seria possível que filhos de Cristo fossem
chamados pelo meu desgraçado nome, eu saco de vermes pobre e fedorento.
Não seja assim, caros amigos, apaguemos todos os nomes partidários e
sejamos (apenas) de Cristo, cujos ensinamentos temos. … Os cristãos não
creem em Lutero, mas no próprio Cristo; (assim) abram mão de Lutero;
apegue-se à palavra. [...] Não sou, nem quero ser o mestre de ninguém.
Somente Cristo é nosso mestre.”
Ao aplicar a admoestação de Paulo
à igreja em Corinto ao seu tempo, Lutero desafia também a nós a
bebermos da fonte do evangelho e a perseverarmos na “obediência da fé”
em Jesus Cristo (Rm 1.5 e 16.26). Só quem deixar de lado o sectarismo
denominacional poderá anunciar a esperança em Cristo a quem vive na
busca ansiosa pelo que dá sentido à vida. Assim lembramos o testemunho
dos reformadores para “… livrar-nos de tudo o que nos atrapalha e do
pecado que nos envolve, e correr com perseverança a corrida que nos é
proposta, tendo os olhos fitos em Jesus, autor e consumador da nossa
fé.” (Hb 12.1-2).
Martin Weingaertner, nascido
em Santa Catarina (1949), é professor e diretor da Faculdade de Teologia
Evangélica em Curitiba (FATEV) e editor do devocionário “Orando em
Família”. Seu casamento com Ursula foi abençoado com 5 filhos e 8 netos.
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