O evangelho não é de direita, centro ou esquerda. O evangelho é de Cristo.
Vejo
com preocupação as tentativas de associar e submeter o evangelho a
sistemas culturais, científicos, políticos ou partidários, um crescente
fenômeno global.
É certo que como cristãos devemos votar,
apoiar, protestar e nos envolvermos com os sistemas sociais que
apresentam afinidades com os valores do evangelho. Não para protegermos
nossas posições em um movimento de corporativismo religioso, mas por
entendermos que o evangelho e seus valores promovem a verdade, a
liberdade e a justiça, visto que não cega, mas aguça a nossa cidadania –
“Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Lc
20.25).
Entretanto, o evangelho não se conforma a sistemas
sociais, pois "é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê"
(Rm 1.16). O evangelho não foi manifesto por Deus somente para melhorar
a sociedade, mas para redimi-la. Não trás tranquilidade, mas paz. Não
provê sucesso, mas obediência. Não se contenta com a tolerância, mas
promove o amor. Não se conforma, mas transforma. Não proclama a glória
dos homens, mas de Deus.
Tentativas de igualar os valores do
evangelho aos sistemas sociais (culturais, científicos, políticos ou
partidários) resultarão em frustrações e distorções, pois não se
consegue confinar os claríssimos raios do sol em frágeis caixinhas de
papelão.
No início do século 3, os cristãos se encantaram com o
apoio e os favores do imperador Constantino, associando o evangelho ao
império romano. No colonialismo dos séculos 15 e 16 a Igreja cristã
promoveu o evangelho, associando-o a um sistema cultural, no caso o
europeu, proclamando-os como complementares. Em dias atuais o evangelho
tem sido comumente associado a estruturas culturais, linhas de pesquisa
científica e posicionamentos sociopolíticos. Nos últimos meses, ouvimos
amplas discussões norte-americanas sobre os valores democratas e
republicanos e aquilo que mais se assemelharia ao evangelho. Perante
tais quadros precisamos nos lembrar que o evangelho não se conforma com o
mundo, mas o confronta, expõe, redime e julga.
O evangelho não é
de direita, centro ou esquerda. Não é petista ou psdbista, republicano
ou democrata, comunista ou capitalista. Não é da zona sul ou norte, dos
países ricos ou pobres. Não segue a escola positivista de Comte ou
interpretativa de Geertz. O evangelho é de Deus, tem origem em Deus, é
manifesto por Deus, pela graça e justiça de Deus, para julgar o mundo e
redimir um povo que dê glória a Deus.
Participei recentemente de
um grupo de estudos cristãos em que a temática era o evangelho e a
cultura. Alguns cristãos apresentaram posições científicas demonstrando
como as ciências sociais reconhecem, em alguma medida, as verdades de
Deus. A ciência social naquele caso era a antropologia e os elementos
apresentados apontavam para a ética universal, o reconhecimento de que a
humanidade possui verdades universais, não apenas particularismos
culturais. Entendo que, semelhante a este caso, o cristão tem o
privilégio de encontrar em diferentes sistemas sociais diversos valores
que tenham alguma afinidade com o evangelho, como políticas públicas que
promovem a liberdade e a paz, ou iniciativas privadas de assistência
aos desabrigados. Entretanto, os sistemas sociais não são o crivo de
avaliação do evangelho, mas sim o contrário. Em uma perspectiva bíblica,
devemos avaliar todas as coisas, em qualquer área da existência, pela
régua do evangelho. Sistemas sociais colaboram para que o homem
compreenda a si mesmo e desenvolva padrões saudáveis de vida e
relacionamento, mas não o redimem. Apenas o evangelho o faz.
Alguns
anos atrás, um grupo de cristãos europeus celebrou quando estudos
arqueológicos apresentaram evidências sobre histórias bíblicas,
sobretudo os relatos sobre Sodoma e Gomorra. Algo semelhante foi
publicado na mídia cristã em 2016 a respeito de novas descobertas
arqueológicas que apoiam o relato bíblico da travessia do mar vermelho
pelo povo de Deus, especialmente antigos artefatos de guerra e
carruagens encontrados em um ponto no fundo do mar. É sempre
interessante ver como as ciências vão reconhecendo os relatos bíblicos,
mas não são os achados arqueológicos, teorias científicas ou
posicionamentos políticos e partidários que validam a nossa fé. Ao
contrário, é pela fé e com os olhos da fé que devemos olhar para todas
as coisas e entendê-las dentro de uma cosmovisão cristã, como reveladas
por Deus (Hb 11).
Percebo que tentativas de associar e submeter o
evangelho aos sistemas sociais têm ocorrido nas diversas esferas do
saber ou fazer humano e precisamos de discernimento cristão para nos
posicionarmos. Creio que devemos apoiar, promover e participar do que
for justo e bom em nossa sociedade, bem como repudiar, protestar e
boicotar aquilo que for degradante e corrosivo, mas sem nos iludirmos
com as soluções humanas, pois estas não podem nos salvar. Ao fim do dia,
a postura essencial do povo de Deus continua sendo aquela que Paulo
ensinou a Timóteo: “prega a palavra, quer seja oportuno quer não…” (2Tm
4.2). E declara que esta pregação deve acontecer com perseverante
paciência (“toda longanimidade”) e fidelidade bíblica (“doutrina”),
usando três verbos que devem marcar a apresentação do evangelho:
“corrige”, (do grego elegcho: apontar o erro, mesmo quando
inconveniente), “repreende” (do grego epitimao: apresentar claramente as
consequências do pecado), e “exorta” (do grego parakaleo: trazer para o
lado, consolar, confortar). O evangelho de Deus, apresentado nos
critérios de Deus, faz sempre estes dois movimentos: confronta o
pecador, lançando luz sobre o seu pecado, e apresenta a graça de Deus,
capaz de perdoar e redimir.
O evangelho é o crivo de compreensão
e avaliação de nossas vidas, relacionamentos, igreja, fé, cultura,
ciência, política e sociedade. Paul Hiebert, missionário-antropólogo,
nos ensinou que o evangelho transforma o homem em três dimensões: suas
convicções, seu comportamento e sua cosmovisão. Passamos a crer
diferente, agir diferente e ver o mundo diferente, com as lentes do
evangelho de Deus.
O evangelho é supracultural, revelação de
Deus a todas as culturas. É multicultural, pois visa trazer pessoas de
todas as tribos, povos, línguas e nações ao Senhor Jesus. É
intercultural, visto que estas pessoas, redimidas, passam a ter comunhão
e fazer parte de um só corpo. É cultural, pois foi revelado por Deus em
nosso tempo e história. É transcultural, devendo ser levado de uma
cultura para outra cultura. É contracultural, pois confronta o homem em
sua própria cultura, trazendo-o das trevas para a luz.
Fujamos
das ideias alienantes que propõem uma espécie de clausura cristã,
sugerindo que observemos a deterioração da humanidade sem qualquer
reação, a não ser o afastamento, perdendo o privilégio de chorar com os
que choram e de ser sal e luz, como nos induzindo a pedir a Deus aquilo
que o próprio Cristo não pediu – tirar-nos do mundo. Na outra ponta,
fujamos também das propostas antropocêntricas que desejam tornar o
cristão apenas em um bom cidadão – e a cidade uma boa cidade – como se a
Igreja fosse vocacionada para ser uma boa ONG com alguns diferenciais
de espiritualidade. A proposta do evangelho vai muito além destas
percepções, pois faz com que o cristão se revolte contra o pecado, se
sensibilize com o sofrimento alheio e tenha imensa sede de apresentar a
verdade que, em Cristo, redime o homem e glorifica a Deus.
Na
Palavra Sagrada o evangelho é apresentado por uma história – a maior e
mais fantástica história de nossas vidas: Deus amorosamente criou a
humanidade para com Ele se relacionar, mas a humanidade se perdeu,
corrompida pelo pecado, cobiçando ser algo diferente da sua natureza e
se afastando do Criador. Movido por profundo amor e indizível graça o
Eterno se encarnou em homem, Jesus Cristo, para pagar o preço do nosso
pecado, nossa impagável dívida. Ele se fez maldição em nosso lugar,
morreu crucificado e o seu sangue comprou para Deus pessoas de todas as
tribos, povos, línguas e nações, dando paz aos homens para que estes
possam dar glórias a Deus. A morte não o segurou, pois ressuscitou,
sendo Ele Rei dos reis e Senhor dos senhores, Salvador de todo aquele
que crê. Está presente, pelo Espírito Santo, que conduz a Sua Igreja a
amar, seguir e proclamar a todos sobre o Cordeiro de Deus que tira o
pecado do mundo. Voltará para julgar vivos e mortos e levar os Seus,
finalizando este impensável plano de amor, sacrifício, perdão, redenção e
glória (Gn 1.1; Rm 3.23; Jo 3.16; Rm 1.1-5; Mt 16.27; Ap 5.9)
Em
qualquer esfera de relacionamento, trabalho, estudo, engajamento
político, social ou desenvolvimento científico, coloquemos o evangelho
em tudo o que somos, falamos e fazemos. E lembremo-nos: o evangelho
jamais se conforma. Se a mensagem que proclamamos não confronta e
constrange o mundo – e também nossos próprios corações – precisamos
rever o que de fato estamos pregando, se o evangelho ou outra coisa.
*****
• Ronaldo Lidório
é pastor presbiteriano, antropólogo e missionário da Agência
Presbiteriana de Missões Transculturais e da WEC. É organizador de Indígenas do Brasil; avaliando a missão da igreja e A Questão Indígena – uma luta desigual.
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