“Onde a Palavra não é pregada e aceita o povo se corrompe”. Essas
palavras parafraseadas de Provérbios 29.18 – lit.: “onde não há
visão/profeta o povo se desvia” - refletem muito bem o entendimento dos
antigos sábios do quanto à falta da instrução de Deus afeta a qualidade
moral de um povo. A sabedoria de Provérbios e de outros escritos do
Antigo Testamento é enfática na necessidade de se meditar na lei do
Senhor para que se viva bem na terra. Contudo, o temor de Deus e a
meditação na lei do Senhor afetavam não só a qualidade moral do povo
como também a qualidade de vida, do governo e da sociedade. Por meio dos
sábios, dos profetas e dos sacerdotes a lei do Senhor era ensinada e
praticada.
Há duas boas razões para refletirmos sobre essa
passagem no momento atual. Primeiro, neste mês lembramos a Reforma
Protestante do século 16. Como sabemos, a Reforma desencadeou um
movimento que resgatou e sustentou dentre muitas verdades a primazia da
autoridade e, consequentemente, da exposição das Escrituras na igreja.
Os primeiros reformadores (Calvino, Bullinger) entendiam que a
verdadeira igreja era marcada pela pregação da Palavra e fiel
administração dos sacramentos. Posteriormente, outros (Pedro Mártir,
Zacarias Ursinus) acrescentaram ainda como terceira marca da verdadeira
igreja a disciplina. Theodoro de Beza, por outro lado, falava de uma
única marca da igreja, a pregação. De todo modo, para o teólogo Robert
Godfrey, cada uma dessas três marcas é a expressão da principal marca, a
Palavra. E a Palavra é entendida pelos reformados como: a) a Palavra
eterna, isto é, a segunda pessoa da Trindade; b) a Palavra encarnada,
Jesus Cristo; c) a Palavra escrita, a Bíblia; e d) a Palavra proclamada.1
Por isso, quando falamos da Palavra como principal marca da igreja,
estamos falando da presença do próprio Deus na igreja. É a Palavra
pregada e vivida que manifesta os propósitos, juízos, misericórdia e
salvação de Deus. Assim, à medida que a igreja prega a Palavra e o povo
de Deus pratica a justiça e o amor, Deus se manifesta e a igreja é um
testemunho e sinal do reino de Deus na terra.
A segunda boa razão
de meditarmos nessa passagem se deve ao momento político e social de
nossa nação. Por mais que a corrupção não tenha surgido agora, estamos
sendo constantemente expostos e lembrados da corrupção generalizada.
Isso nos faz pensar que vivemos no país uma profunda crise de caráter e
integridade. Isso não se limita aos empresários e políticos envolvidos
nos casos que estão sendo investigados, mas à nação como um todo. Há uma
crise de caráter porque perdemos o referencial do certo e errado. Mesmo
que boa parte da população não professe ou não pratique a fé cristã, a
sociedade está fundada em valores e princípios de justiça e igualdade os
quais se sustentam por deveres e direitos dos cidadãos. E como cristãos
entendemos que há também princípios bíblicos que dirigem nossa vida --
não só religiosa e espiritual como também nossa vida na sociedade.
Mas
você dirá: a igreja está ativa na sociedade. Ela evangeliza e prega a
palavra por todos os meios possíveis de comunicação. As religiões
crescem, literatura religiosa e bíblica está cada vez mais acessível às
pessoas. A Bíblia pode ser encontrada nas livrarias dos shoppings,
bancas de jornal ou de camelôs. Não há falta de proclamação da Palavra.
Mesmo assim, “o povo se corrompe”.
Curiosamente, foi justamente
no período de importantes profetas do Antigo Testamento, como Elias,
Eliseu, Amós, Oseias Isaías, Miqueias, Jeremias, Ezequiel e outros que
as maiores abominações eram praticadas em Judá e Israel. Nem mesmo a
reforma do rei Josias em Jerusalém, quando o livro da lei foi descoberto
no templo e passou a ser ensinado e praticado, foi suficiente para
impedir a catástrofe do exílio babilônico (2 Rs 23.24-27). Então, até
que ponto a proclamação da Palavra impede um povo de se corromper ou se
desviar?
Primeiro, à medida que o povo de Deus pratica os
ensinamentos de Jesus, a igreja não só serve de sinal da presença e do
reino de Deus como também influencia a sociedade por meio de suas ações.
Se de um lado é verdade que importantes profetas do Antigo Testamento
viveram em época de muita idolatria e abuso de poder dos reis, também é
verdade que sua pregação confrontou e incomodou os reis. Além disso, a
história da igreja é repleta de exemplos em que o compromisso da igreja
com o ensino das Escrituras teve impacto positivo na sociedade. Não só a
Reforma do século 16, mas também o movimento pietista, o puritanismo na
Inglaterra, os avivamentos na América do Norte e na Europa, e o
pentecostalismo na América Latina tiveram impacto na sociedade. Esses
movimentos resultaram no engajamento da igreja com questões sociais e
humanitárias de modo a transformar a sociedade.
Segundo, é
justamente em época de violência, corrupção, conflitos e guerras que a
igreja precisa ser mais ousada e eficaz na propagação da mensagem do
evangelho. Os profetas denunciavam os erros e anunciavam esperança. Não
se trata de uma pregação moralista ou de uma tentativa de impor normas
bíblicas e cristãs nas leis civis, mas envolve viver e defender os
valores do reino de Deus não só dentro da igreja como também fora dela.
John Stott expressava essa ideia dizendo que a igreja deve servir de
“contracultura” à sociedade moderna. Não significa transformar uma nação
em um país cristão nem em eleger um presidente cristão, mas defender
arduamente os valores do reino de Deus.
Terceiro, a Palavra
precisa ser pregada ousadamente na própria igreja. Se a Palavra não é
pregada na igreja, o próprio povo de Deus se corromperá. Infelizmente,
há um enfraquecimento da pregação na igreja evangélica hoje. A exposição
e ensino bíblico vêm sendo substituído por entretenimentos religiosos.
Como disse A. W. Tozer há mais de 60 anos,
“Na maioria das
igrejas evangélicas é comum agora oferecer ao povo, principalmente aos
jovens, o máximo de entretenimento e o mínimo de instrução. Em muitos
lugares raramente é possível ir a uma reunião cuja única atração seja
Deus. Só se pode concluir que os filhos de Deus estão entediados dele,
pois é preciso mimá-los com pirulitos e balinhas na forma de películas
religiosas, jogos e refrescos” (A. W. Tozer)
No texto de
Provérbios 29.18, a palavra “povo” refere-se à própria nação de Israel,
por isso, aqueles que supostamente tinham o conhecimento de Deus, porém,
corriam o risco de se corromper por não atentar ao que Deus tinha a
dizer. A Bíblia “A Mensagem” representa bem essa ideia: “Quando as
pessoas não conseguem ver o que Deus está fazendo, elas tropeçam em si
mesmas; Mas, quando atentam para o que ele revela, são as mais
abençoadas.”
Não há dúvida que vivemos uma profunda crise de
integridade em nossa nação. Não podemos permitir que as Escrituras
deixem de ser proclamadas e vividas pela igreja. Todos desejam
transformações, desejamos uma sociedade mais justa e menos corrupta. A
Palavra transforma os indivíduos e a sociedade, consequentemente, serve
de sinal da presença do reino de Deus no mundo.
Nota:
1. Godfrey, Robert W. The marks of the church. Disponível neste link.
Pastor presbiteriano, doutor em Antigo Testamento e
diretor acadêmico da Faculdade Teológica Sul-Americana, em Londrina
(PR).
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