Frequentemente julgamos a vida a partir de valores mais externos,
contábeis e visíveis do que pelas coisas do coração. Corremos, assim, o
risco de nos encantarmos com histórias, livros e pessoas que não
encantam a Deus, aprovando aquilo que Ele desaprova e desaprovando o que
Ele aprova.
A sociedade nos leva a crer que somos aquilo que
aparentamos e, não raras vezes, somos julgados pelos nossos títulos,
realizações, influência, aparência e tantas outras credenciais que
tentam definir nossa identidade.
A razão para tal postura
sociocultural é a natureza pecaminosa humana e sua tendência a
esconder-se de Deus e da verdade. Desde Adão, que fugiu ao ser convocado
por Deus em Gênesis 3, nos tornamos seres construtores de máscaras,
agindo com ar de espiritualidade enquanto os interesses do coração e a
satisfação do ego tornam-se o centro da vida.
Qual a sua máscara?
O
uso de máscaras é prática comum em diversas culturas, festas e
apresentações teatrais ao longo da história. Dentre a diversidade de
significado e função, máscaras são frequentemente usadas para esconder a
verdadeira face ou projetar uma aparência diferente. De igual modo,
somos uma sociedade inclinada ao uso de máscaras, tanto para esconder a
verdade como para projetar uma imagem idealizada. Máscaras de pureza em
vidas sem compromisso com a santidade; máscaras de amor em
relacionamentos marcados pelos interesses pessoais; máscaras de
compromisso em casamentos internamente destruídos; máscaras de
tolerância, que escondem planos vingativos; máscaras de espiritualidade
em decisões puramente políticas e interesseiras; máscaras de exortação
em sermões que não correspondem com a própria vida; máscaras de
misericórdia, sem coração compassivo ou qualquer interesse em aliviar a
dor do aflito.
Na busca por um coração íntegro talvez a oração
mais marcante na Palavra tenha sido proferida pelo salmista: “Sonda-me ó
Deus, e conhece o meu coração: prova-me e conhece os meus pensamentos;
vê se há em mim algum caminho mau, e guia-me pelo caminho eterno” (Sl
139:23, 24).
No Reino de Deus a verdade é o fundamento de toda
avaliação. Não por acaso a Palavra nos diz que ela nos libertará. A
ausência da verdade, por outro lado, nos mantem cativos às mesmas
masmorras psíquicas e comportamentais de sempre. De quando em quando,
precisamos ser chocados com a verdade sobre as nossas vidas, que faz
depor as máscaras, reconhecer o estado do coração e buscar misericórdia e
transformação em Cristo. Estes choques de realidade geralmente
acontecem no encontro com a Palavra de Deus.
Deus não se impressiona com seus feitos
O
elemento principal com o qual Jesus nos avalia é bem menos visível,
menos contábil e certamente menos observado por aqueles que nos cercam,
pois Ele nos conhece no íntimo, sem máscaras, manipulações ou enganos. A
Palavra usa expressões como “coração puro” (Sl 51:10), “de todo o teu
coração” (Mt 22:37), “integridade do coração” (Sl 78:72), e “santidade
ao Senhor” (Ex 29:6) para nos fazer entender que Deus nos avalia mais
pelas coisas do coração do que pela nossa roupagem.
Sim, Jesus
conhece o secreto da sua vida. Ele certamente não se impressiona pelas
grandes construções que levantou, realizações aplaudidas por multidões
ou teses defendidas debaixo dos holofotes. O Carpinteiro de Nazaré olha
direto para o seu coração e vasculha a sua alma. E é justamente neste
campo que seremos encontrados, fieis ou não.
A racionalização, a fuga e a hipocrisia: inimigas da santidade
Há
vários elementos humanos que nos preterem de buscar um coração puro.
São os inimigos da santidade, contra os quais devemos lutar. Três deles
são a racionalização, a fuga e a hipocrisia.
O problema central
da racionalização é que ela nos distancia da verdade. Leva-nos, tão
somente, a construirmos as razões que justificam o nosso pecado, não nos
confronta e jamais nos ajuda a termos corações transformados. Se você
convive com alguém que sempre racionaliza seus problemas pessoais, há
uma alta chance de que ele venha a repeti-los muitas e muitas vezes. A
soberba e orgulho são aliados da racionalização, pois ajudam a pensar
que o outro é sempre inferior e, consequentemente, participante maior em
nosso próprio erro. Tolstoi, no livro Celebração da Disciplina,
argumenta que todos pensam em mudar a humanidade, mas poucos pensam em
mudar a própria vida. E a racionalização é um sério elemento que nos
impede de buscarmos uma vida confrontada e transformada pela verdade.
A
fuga, assim chamemos, trata o pecado como um objeto distante e jamais o
observa de perto. Tal mecanismo provoca constantes evasivas no
pensamento e discurso quando se trata de avaliar o próprio coração.
Corações em fuga jamais lidam com seus erros de forma objetiva, pois há
sempre outra pessoa, circunstância ou motivo que deve ser o foco de
atenção e para onde se transfere a responsabilidade primária do pecado. O
problema da fuga, bem como da racionalização, é que nos distanciamos da
verdade, andando sempre nas adjacências dos nossos erros, sem jamais
vê-los confrontados.
O caminho para um coração santo inicia na
Palavra que nos encoraja, ensina, confronta, conduz à retidão e alinha
nossos pensamentos, impedindo a racionalização improdutiva ou a fuga
irresponsável. Sendo assim, a busca por uma vida cristã autêntica
faz-nos olhar para Deus e torna-nos sensíveis ao pecado, “para que vos
torneis irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus, inculpáveis no meio
de uma geração pervertida e corrupta, na qual resplandeceis como
luzeiros no mundo” (Fp. 2:15).
A hipocrisia, por sua vez, é quase
sempre resultado de um coração soberbo e olhar altivo, que impede de
perceber que o pecado apontado e combatido no outro corresponde, muitas
vezes, à tendência do nosso próprio coração. Um coração hipócrita é
aquele que é duro, rápido e assertivo para apontar o pecado alheio, com
expressão de surpresa e repúdio, mas se mantem em silêncio com os
próprios pecados, tratados com extrema tolerância. Salomão enfatiza que
Deus se entristece profundamente com tal conduta, pois o Senhor aborrece
olhos altivos (Pv 6:17). Gálatas 5 nos revela que as obras da carne
estão todas no mesmo pé de igualdade. Os pecados contra a pessoa de Deus
(idolatria, feitiçaria), contra o próprio corpo (prostituição,
impureza, lascívia, bebedeiras e glutonarias) e contra o outro
(inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facções e
invejas) igualmente nos distanciam do Senhor.
Devemos lutar não
apenas contra a prostituição e a idolatria, como claramente se faz na
Igreja de Cristo, mas também contra a arrogância, a murmuração, o
orgulho, a malícia, a avareza, a inveja, a altivez, a jactância, o
desrespeito e o atrevimento.
É certo, porém, que não podemos
purificar nosso próprio coração. Dentre tantas verdades marcantes do
Cristianismo, uma das principais é que dependemos de Deus. Que o Senhor
nos leve a orar com sinceridade e humildade, a cada dia, como o
salmista: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova dentro em mim
um espírito inabalável” (Sl 51:10).
Ronaldo Lidório é doutor em antropologia e missionário da Agência
Presbiteriana de Missões Transculturais e da Missão AMEM. É organizador
de Indígenas do Brasil -- avaliando a missão da igreja e A Questão Indígena -- Uma Luta Desigual.
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